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Textos

"A Marca na Parede" é um conto escrito por Virginia Woolf. A história começa com a narradora contemplando uma marca na parede de seu quarto e refletindo sobre a natureza da realidade, da imaginação e da vida interior. Enquanto explora essa simples marca, a narradora mergulha em uma série de pensamentos filosóficos, explorando temas como a percepção, a mente humana e a natureza efêmera da existência. Este conto curto é um exemplo impressionante da prosa reflexiva e introspectiva de Virginia Woolf, que convida os leitores a questionar a realidade cotidiana e a profundidade de suas próprias experiências.

 

Parte 01

 

Foi talvez em meados de janeiro deste ano que olhei pela primeira vez para cima
e vi a marca na parede. Para fixar uma data é preciso lembrar o que se viu. Por
isso eu penso agora no fogo; no inalterável véu de luz amarela sobre a página do
meu livro; nos três crisântemos na jarra de vidro redonda na lareira. Sim, deve
ter sido no inverno, e tínhamos acabado de terminar nosso chá, pois lembro que
eu estava fumando quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira
vez. Olhei para cima, através da fumaça do cigarro, e meu olhar foi alojar-se
por um momento nas brasas, e aquela velha fantasia da bandeira carmesim
tremulando na torre de um castelo me veio à mente, e pensei no cortejo de
cavaleiros vermelhos subindo pelo penhasco negro. Mas, para meu alívio, a
fantasia foi interrompida pela visão da marca, porque é uma fantasia antiga, uma
fantasia automática, constituída talvez na infância. A marca, negra na parede
branca, era pequena e arredondada, a uns quinze centímetros acima do parapeito
da lareira.


Quão de pronto nossos pensamentos se atiram a um novo objeto, erguendoo
por um pouco, assim como formigas que carregam febrilmente uma lasca de
palha e depois a abandonam… Se a marca fosse de prego, não devia ter sido
para quadro, só podia ser para miniatura — a miniatura de uma dama de cachos
empoados de branco, faces empoadas de creme e lábios como cravos
vermelhos. Uma fraude decerto, pois as pessoas que moraram nesta casa antes
de nós teriam escolhido quadros assim — para um cômodo antigo, um quadro
antigo. Eis o tipo de pessoas que eram — pessoas muito interessantes, e é tão
frequente eu pensar nelas, nesses lugares tão estranhos, porque nunca voltaremos
a vê-las, nunca saberemos o que aconteceu a seguir. Pretendiam sair desta casa
porque queriam mudar o estilo dos móveis, assim disse ele, e estava em processo
de dizer que em sua opinião a arte deveria ter ideias por trás quando fomos
separados à força, como somos separados da velha senhora que está para servir
o chá e do jovem que está para atingir a bola de tênis no quintal da casa
suburbana quando passamos de trem.


Mas, quanto à marca, não estou certa; não creio, afinal, que tenha sido feita
por um prego; é muito grande e redonda para ser de prego. Eu poderia levantarme,
mas se o fizesse, para a olhar, é quase certo que não saberia dizer
exatamente o que é; porque, uma vez feita uma coisa, ninguém nunca sabe como
aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida! A inexatidão do pensamento! A
ignorância da humanidade! Para mostrar como é pouquíssimo o controle que
temos sobre nossas posses — sendo questão acidental que este modo de vida seja
afinal nossa civilização —, deixem-me enumerar apenas algumas das coisas
perdidas em nosso tempo de vida, a começar por — que gato iria comer, que
rato iria roer? — três caixas azuis de ferramentas para encadernação de livros,
que sempre pareceu a mais misteriosa das perdas. Depois houve as gaiolas de
pássaros, os aros de ferro, os patins de aço, a caixa de carvão Queen Anne, o
quadro de bugigangas, o realejo — tudo se foi, e também joias. Opalas e
esmeraldas jazem em torno das raízes de nabos. Como é preciso aparar e raspar
para ter certeza! Espanta é que eu tenha roupas no corpo, que me sente rodeada,
neste momento, de móveis sólidos. Porque, se quisermos comparar a vida a
alguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetros
por hora — desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo!
Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas de
asfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, no correio, pela calha abaixo!
Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida. Sim, isso
parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétua recuperação; e tão
por acaso, tão a esmo…


Mas após a vida. A queda lenta dos pedúnculos verdes e grossos para que o
cálice da flor, à medida que vira, banhe-nos de luz vermelha e púrpura. Por que,
afinal, não se há de nascer lá como se nasce aqui, sem defesa e sem fala,
incapaz de focar os olhos, agarrando-se às raízes da grama, aos pés dos Gigantes?
Quanto a dizer o que são árvores, o que são homens e mulheres, ou se existem
tais coisas, isso não estaremos em condições de fazer por cinquenta anos ou mais.
Não haverá nada a não ser espaços de luz e escuridão, cruzados por pedúnculos
grossos, e talvez bem altos, traços em forma de roseta de uma cor indistinta —
rosas pálidos e azuis — que se tornarão, com o passar do tempo, mais definidos,
mais — não sei o quê…


E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até ter
sido causada por alguma coisa arredondada e preta, como uma folhinha de
roseira deixada pelo verão, e não sendo eu uma dona de casa muito atenta —
vejam só, por exemplo, quanta poeira em cima da lareira, a poeira que, pelo que
dizem, cobriu Troia por três vezes, apenas fragmentos de vasos negando-se
obstinadamente à aniquilação, como se pode crer.


A árvore perto da janela bate de leve na vidraça… Quero pensar com
calma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de me
levantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhuma
sensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo,
longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem, deixarme
agarrar a primeira ideia que passa… Shakespeare… Bem, tanto faz
ele ou outro. Um homem que solidamente sentou-se numa poltrona e olhou para
o fogo e assim… Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum Céu muito
alto para atingir sua mente. Ele, abaixando a cabeça, apoiou a testa na mão, e os
outros, olhando pela porta aberta — pois supõe-se que esta cena aconteça numa
noite de verão… Mas como é enfadonha esta ficção histórica! Não me interessa
em nada. Bem que eu gostaria de dar com uma linha de pensamento agradável,
uma linha que indiretamente refletisse crédito em mim, pois tais são os
pensamentos mais agradáveis e muito frequentes até mesmo nas mentes de
modestas pessoas cor de rato, que sinceramente acreditam que não gostam de
receber elogios. Não são pensamentos diretamente autoelogiosos; e essa é que é
a sua beleza; são pensamentos como este:


“E então entrei na sala. Eles estavam falando de botânica. Falei da flor que
eu tinha visto crescendo num monte de lixo no quintal de uma casa velha em
Kingsway. A semente, disse, deve ter sido plantada no reinado de Carlos i. Que
flores ocorriam no reinado de Carlos I?”, perguntei — (mas não me lembro da
resposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estou
vestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo,
não a adorando abertamente, pois, se o fizesse, eu deveria considerar-me em
erro e esticar a mão de imediato para em autoproteção apanhar um livro. É
curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou
de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do
original para que ainda acreditem nela. Ou isso não é, afinal de contas, tão
curioso assim? É uma questão de grande importância. Suponha-se que o espelho
se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo
verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de
uma pessoa que é vista por outras — que mundo raso, árido, proeminente e sem
ar ela se torna! Não um mundo no qual viver. Quando nos encontramos face a
face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o
que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos. E os romancistas do
futuro dar-se-ão cada vez mais conta da importância dessas reflexões, pois claro
está que não há só um, mas sim um número quase infinito de reflexões; são essas
profundidades que eles irão explorar, esses os fantasmas que perseguirão,
deixando a descrição da realidade cada vez mais fora de suas histórias, já
contando com um conhecimento dela, como fizeram os gregos e talvez
Shakespeare — mas essas generalizações são muito inúteis. Basta o timbre militar
da palavra, que lembra editoriais, ministros de gabinete — toda uma categoria de
coisas que em criança tomávamos pelo que podia haver de mais sério, de mais
grave, de mais importante, e das quais não se podia escapar, a não ser sob risco
de inominável danação. As generalizações trazem de volta, de alguma forma, o
domingo em Londres, os passeios nas tardes de domingo, os almoços de
domingo, e também modos de falar de mortos, roupas, hábitos — como o hábito
de se sentarem todos juntos numa sala até certa hora, embora ninguém gostasse
disso. Havia uma regra para tudo. A regra para toalhas de mesa, nessa época
específica, é que deveriam ser feitas em tapeçaria, com pequenos
compartimentos amarelos voltados para o lado de cima, como se pode ver em
fotografias dos tapetes nos corredores dos palácios reais. As toalhas de outro tipo
não eram verdadeiras. Quão chocante, no entanto quão maravilhoso, descobrir
que essas coisas verdadeiras, os almoços de domingo, os passeios de domingo, as
casas de campo e as toalhas de mesa, não eram afinal tão verdadeiras assim,
sendo de fato meio fantasmais, e que a danação que se abatia sobre quem não
acreditava nelas era apenas uma impressão de liberdade ilegítima.

 

O que agora toma o lugar dessas coisas, pergunto-me, dessas coisas importantes e sérias?
Talvez os homens, caso você seja mulher; o ponto de vista masculino que
governa nossas vidas, que fixa o padrão, que estabelece a Ordem de Precedência
de Whitaker,2 a qual desde a guerra se tornou meio fantasma, suponho eu, para
muitos homens e mulheres, e que em breve, é lícito esperar, será motivo de riso
na lata de lixo para onde vão os fantasmas, os bufês de mogno e as gravuras de
Landseer,3 deuses e demônios, o Inferno e assim por diante, deixando-nos a
todos uma impressão intoxicante de liberdade ilegítima — se existe liberdade…
Sob certas luzes essa marca na parede parece na verdade se projetar da
parede. Não é perfeitamente circular. Não posso ter certeza, mas parece lançar
uma sombra perceptível, sugerindo que, se eu corresse o dedo para baixo,
naquela faixa da parede, a um certo ponto ele iria subir e descer por um
montículo, liso como os de South Downs, que ou bem são túmulos, segundo
dizem, ou bem, acampamentos. Dos dois, eu preferiria que fossem túmulos,
desejando a melancolia, como a maioria dos ingleses, e achando natural, ao fim
de uma caminhada, pensar nos ossos esticados que há embaixo da terra… Deve
haver algum livro sobre isso.

 

Algum antiquário deve ter escavado essas ossadas, dando-lhes depois um nome…

Que espécie de homem, pergunto-me, é um antiquário? A maioria é de coronéis reformados,

creio eu, guiando grupos de trabalhadores idosos até o cume, examinando torrões e

pedras e correspondendose com o clero das redondezas, o qual lhes dá, já estando aberto à hora do
desjejum, um sentimento de importância, e a comparação de pontas de flechas
necessita de longas viagens às cidades da região, necessidade agradável tanto
para eles quanto para suas velhas esposas, que querem fazer uma geleia de
ameixa, ou uma faxina no escritório, e têm todas as razões para manter essa
grande questão de acampamento ou túmulo em suspensão perpétua, enquanto o
próprio coronel sente-se satisfatoriamente filosófico ao acumular evidências
sobre os dois lados da questão. É verdade que ele finalmente se inclina a crer no
acampamento; e, quando se opõem à sua hipótese, redige um panfleto que está a
ponto de ler na reunião trimestral da sociedade local quando um infarto o
derruba, e seus últimos pensamentos conscientes não se reportam a mulher nem
aos filhos, mas ao acampamento e àquela ponta de flecha, que agora está na
vitrine do museu da cidade, junto com o pé de uma assassina chinesa, um
punhado de pregos elizabetanos, muitos cachimbos de barro Tudor, um
fragmento de cerâmica romana e o copo em que Nelson bebeu vinho —
provando realmente não sei o quê.


Não, não, nada é provado, nada é sabido. E se eu me levantasse, neste exato
momento, e me certificasse de que a marca na parede é na verdade — como
devo dizer? — a cabeça de um velho prego gigante, cravado ali há uns duzentos
anos e que agora, devido ao paciente atrito causado por muitas gerações de
faxineiras, apontou a cabeça por cima das camadas de tinta para dar sua
primeira olhada na vida moderna, captando-a numa sala onde as paredes são
brancas e a lareira está acesa, o que eu ganharia? Conhecimento? Tema para
especulação posterior? Quer em pé, quer sentada sem me mexer, eu sou capaz
de pensar. E o que é conhecimento? O que são nossos homens de saber senão
descendentes de bruxas e eremitas que se acocoravam em grutas e nas matas
preparando suas beberagens de ervas, interrogando musaranhos e anotando a
linguagem das estrelas? E quanto menos os respeitamos, à medida que nossas
superstições se reduzem e aumenta nosso respeito pela beleza e a saúde mental…
Sim, poder-se-ia imaginar um mundo muito agradável. Um tranquilo mundo
espaçoso, com flores bem azuis e vermelhas pelos descampados. Um mundo
sem professores, sem especialistas, sem zeladores com perfis de polícia, um
mundo que se pudesse cortar com o pensamento como um peixe corta a água
com suas nadadeiras, roçando em talos de nenúfares que pendem suspensos
sobre ninhos de ovos brancos do mar…

 

Como é tranquilo aqui embaixo, enraizado no centro do mundo e olhando para cima pelo acinzentado das águas,
com seus repentinos fachos de luz, com seus reflexos — ah, se não fosse o
Almanaque de Whitaker — se não fosse a Ordem de Precedência!
Tenho de me levantar para ir ver em pessoa o que é realmente esta marca
na parede — um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?
Aqui está mais uma vez a Natureza em seu velho jogo de autopreservação.
Esta linha de pensamento, percebe ela, ameaça tornar-se pura perda de energia,
ameaça até mesmo colidir com a realidade, pois quem jamais será capaz de pôr
um dedo em riste contra a Ordem de Precedência de Whitaker? O arcebispo de
Canterbury é seguido pelo presidente da Câmara dos Pares; o presidente da
Câmara dos Pares é seguido pelo arcebispo de York. Todo mundo segue alguém,
tal é a filosofia de Whitaker; e a grande coisa é saber quem segue quem.
Whitaker sabe, e você que se console com isso, como a Natureza aconselha, ao
invés de enraivar-se; mas, se você não puder ser consolada, se tiver de estragar
esta hora de paz, pense então na marca na parede.


Entendo o jogo da Natureza — sua prontidão para agir como modo de
interromper qualquer pensamento que ameace agitar ou causar dor. Daí provém,
suponho, nosso leve desprezo pelos homens de ação — homens, presumimos, que
não pensam. Seja como for, não faz mal ficar olhando uma marca na parede
para pôr um ponto final em nossos desagradáveis pensamentos.
De fato, agora que fixei o olhar nela, sinto que me agarrei a uma tábua de
salvação; tenho uma satisfatória noção de realidade que de uma vez por todas
transforma os dois arcebispos e o presidente da Câmara dos Pares em meras
sombras. Eis aqui alguma coisa concreta, definida. Assim, despertando de um
sonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantém
quiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade,
adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua. É
disso que queremos estar seguros… A madeira é uma boa coisa na qual pensar.
Vem de uma árvore; e as árvores crescem, e não sabemos como crescem. Por
anos e anos elas crescem, sem nos dar nenhuma atenção, em campinas, em
florestas e à beira dos rios — coisas nas quais, sem exceção, nós gostamos de
pensar. As vacas dão chicotadas com o rabo, à sombra delas, nas tardes quentes;
elas pintam tão de verde os rios que, quando um frango-d’água mergulha,
esperamos vê-lo com as penas todas verdes, quando volta à tona. Gosto de pensar
nos peixes que balançam contra a correnteza como bandeiras ao vento; e nos
besouros-d’água que lentamente vão erguendo domos de lama sobre o leito do
rio. Gosto de pensar na árvore em si: primeiro na íntima e seca sensação de ser
madeira; depois na trituração pela tempestade; depois na lenta, deliciosa
penetração de seiva. Gosto de pensar nisso também nas noites de inverno, quando
me ergo no campo vazio com as folhas todas dobradas, fechando-me sem nada
expor de sensível aos projéteis de ferro que vêm da lua, um mastro nu na terra
que não para, ao longo de toda a noite, de rodopiar. O canto dos passarinhos deve
soar muito alto e estranho em junho; e que frio devem sentir nos pés os insetos,
quando fazem seus laboriosos avanços, subindo pelas rugas da casca, ou tomam
sol sobre o toldo verde e fino das folhas, olhando reto para a frente com seus
olhos vermelhos, cortados em forma de diamante…

 

Uma a uma as fibras estalam sob a imensa pressão fria da terra e vem então o temporal mais recente
e os galhos mais altos, caindo, cravam-se na terra de novo, e fundo. Nem assim a
vida acaba; para uma árvore, ainda há um milhão de vidas pacientes e atentas
em todo o mundo, em quartos de dormir, em barcos, no assoalho, forrando salas
onde homens e mulheres sentam-se depois do chá para fumar seus cigarros. Está
cheia de pensamentos tranquilos, de pensamentos felizes, esta árvore. Bem que
eu gostaria de pegar cada um deles separadamente — mas alguma coisa está
atrapalhando. Onde é que eu estava? De que é mesmo que se tratava? Uma
árvore? Um rio? A região dos Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos de
asfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo está se movendo, caindo,
deslizando, sumindo… Há uma vasta sublevação da matéria. Alguém está de pé,
acima de mim, e diz:


“Vou sair um instante para comprar um jornal.”
“Hein?”
“Se bem que nem adianta comprar jornais… Nunca acontece nada. Maldita
guerra; que Deus maldiga esta guerra!… Seja como for, não vejo por que
tínhamos de ter um caramujo na parede.”
Ah, a marca na parede! Era um caramujo.

 

KEW GARDENS
Do canteiro de flores em forma oval erguia-se talvez uma centena de talos que
no meio da ascensão se alargavam em folhas em forma de coração ou de língua
e se desfraldavam na ponta em pétalas vermelhas ou azuis ou amarelas com
manchas de outra cor a marcá-las na superfície; e da obscuridade do colo,
vermelha, azul ou amarela, emergia uma haste reta, coberta de pó dourado e
ligeiramente rombuda na ponta. As pétalas eram suficientemente volumosas
para serem sopradas pela brisa do verão e, quando se moviam, as luzes
vermelhas, azuis e amarelas passavam umas sobre as outras, lançando em dois
dedos da terra escura por baixo uma pequena mancha de coloração intrincada.
Ou bem a luz caía no dorso liso e acinzentado de uma pedrinha, ou bem nas
costas de um caracol, sobre sua concha de veios pardos circulares, ou ainda,
caindo numa gota de chuva, expandia com tal intensidade de vermelho, azul e
amarelo as paredes finas da água, que se esperava que fossem rebentar e sumir.
Em vez disso, voltou a gota a receber um segundo cinza-prateado, e a luz foi
concentrar-se agora na carne de uma folha, revelando, por baixo da superfície, a
esgalhada trama de fibras, e de novo se moveu e estendeu sua iluminação aos
vastos espaços verdes sob a abóbada de folhas em forma de coração e de língua.
A brisa então soprou ligeiramente mais forte e a cor, sendo esbatida para cima,
desapareceu pelo ar, pelos olhos dos homens e mulheres que andavam em julho
por Kew Gardens.


As figuras desses homens e mulheres passaram desgarradas pelo canteiro
de flores numa movimentação curiosamente irregular, não destituída de
semelhança com a das borboletas brancas e azuis que cruzavam o gramado em
voos em ziguezague de canteiro em canteiro. O homem ia a uns dois palmos na
frente da mulher, vagando distraidamente, enquanto ela se demorava mais
concentrada, só virando a cabeça de vez em quando para ver se as crianças não
tinham ficado muito para trás. O homem mantinha aquela distância à frente da
mulher de propósito, embora talvez inconscientemente, porque queria seguir com
seus pensamentos.


“Faz quinze anos que estive aqui com Lily ”, pensava ele. “Sentamo-nos à
beira de um lago por ali e eu, durante toda a tarde quente, pedi que ela se casasse
comigo. Em torno de nós, circulando sem parar, um louva-a-deus: que agora eu
vejo tão claramente como o sapato dela, com uma fivela quadrada prateada na
ponta. O tempo todo em que eu falava, olhava para o sapato e, quando
impacientemente ele se mexia, eu sabia sem olhar para cima o que ela iria dizer:
toda ela parecia estar no sapato. Já meu amor, meu desejo estavam no louva-adeus;
por alguma razão eu pensava que, se ele pousasse lá, naquela folha, a folha
larga com uma flor vermelha no meio, se o louva-a-deus pousasse ali ela iria
dizer ‘Sim’ sem pestanejar. Mas o louva-a-deus voava sem parar, nunca pousou
em canto algum — felizmente aliás, porque senão eu não estaria passeando por
aqui com Eleanor e as crianças. — Você às vezes pensa no passado, Eleanor?”
“Por que a pergunta, Simon?”


“Porque eu andei pensando no passado. Lembrei de Lily, a mulher com
quem eu poderia ter-me casado… Mas por que você ficou tão calada? Importalhe
que eu pense no passado?”
“Mas por que importaria, Simon? Não pensamos todos nós no passado, num
jardim com homens e mulheres sob as árvores? Não são eles o nosso próprio
passado, tudo o que resta dele, esses homens e mulheres, esses fantasmas que
jazem sob as árvores… nossa felicidade, nossa realidade?”
“Para mim, uma fivela de sapato, quadrada e prateada, e um louva-adeus…”
“Para mim, um beijo. Imagine seis mocinhas sentadas diante de seus
cavaletes, há vinte anos, na beira de um lago, pintando nenúfares, os primeiros
nenúfares vermelhos que eu via. E de repente um beijo, bem na minha nuca.
Não pude mais pintar, porque fiquei a tarde toda com a mão tremendo. Peguei
meu relógio e marquei a hora em que me permitiria pensar no beijo por somente
cinco minutos — era tão precioso —, o beijo de uma velha grisalha com uma
verruga no nariz, a mãe de todos os meus beijos na vida. Venha, Caroline, venha,
Hubert.”
Passaram pelo canteiro de flores, andando agora os quatro lado a lado, e
logo diminuíram de tamanho entre as árvores, dando a impressão de serem
semitransparentes à medida que a luz e sombras boiavam nas suas costas em
manchas trêmulas, grandes e irregulares.


No canteiro oval de flores o caracol, cuja concha fora tingida de vermelho,
azul e amarelo por mais ou menos dois minutos, parecia mover-se agora muito
lentamente na concha, para logo se esforçar sobre fragmentos de terra fofa que
se despedaçavam rolando quando ele passava por cima. Dava a impressão de ter
pela frente um objetivo definido, diferindo nesse aspecto do singular inseto verde
e anguloso que com altas passadas tentou atravessar na sua frente e esperou por
um segundo com as antenas tremendo, como que em deliberação, e depois pulou
fora na direção oposta, tão rápida e estranhamente como tinha chegado.
Íngremes e escuros rochedos com fundos lagos verdes nas cavidades, árvores
lisas como lâminas que tremiam das raízes ao topo, pedregulhos redondos
acinzentados, vastas superfícies enrugadas de uma rala textura quebradiça —
todos esses obstáculos contrapunham-se ao avanço do caracol entre um talo e
outro em direção ao seu destino. Antes de ele haver decidido se contornava a
tenda arqueada de uma folha seca ou se a peitava, os pés de outros seres
humanos passaram também pelo canteiro.


Ambos dessa vez eram homens. E a expressão do mais novo dos dois era de
calma talvez inatural; ele erguia os olhos e os fixava com absoluta regularidade à
frente enquanto seu companheiro falava e, tão logo o companheiro tinha acabado
de falar, olhava para o chão novamente e às vezes abria os lábios, mas só depois
de uma longa pausa, e às vezes nem sequer chegava a abri-los. O homem mais
velho tinha um método curiosamente irregular e desengonçado de andar,
esticando a mão para a frente e jogando a cabeça abruptamente para o alto,
mais ou menos à maneira de um impaciente cavalo de carruagem cansado de
esperar na frente de uma casa; mas no homem esses gestos eram irresolutos e
despropositados. Ele quase não parava de falar; sorria para si mesmo e retomava
a conversa, como se aquele seu sorriso tivesse sido uma resposta. Estava falando
sobre espíritos — os espíritos dos mortos que, segundo ele, neste exato momento
lhe contavam as mais variadas e estranhas coisas sobre suas experiências no Céu.
“O Céu era conhecido pelos antigos como Tessália, William, e agora, com
esta guerra, os temas espirituais estão rolando entre as colinas como um trovão.”
Fez uma pausa, parecia escutar, sorriu, soergueu a cabeça e prosseguiu:
“Trata-se de uma pequena bateria elétrica, com uma capa de borracha
para isolar o fio — isolar? — insular? — bem, vamos deixar de lado os detalhes,
não adianta entrar em detalhes que não seriam entendidos —, e a maquininha,
em suma, fica em qualquer lugar conveniente à cabeceira da cama, digamos,
sobre uma mesinha de mogno, de bom gosto. Sendo todos os preparativos
corretamente executados por trabalhadores dirigidos por mim, a viúva encosta o
ouvido ali e convoca o espírito por sinal, como combinado. Mulheres! Viúvas!
Mulheres de preto…”


A essa altura ele deu a impressão de ter avistado ao longe um vestido de
mulher que parecia ser, na sombra, de um preto arroxeado. Tirou o chapéu, pôs
a mão no coração e, com gestos e murmúrios febris, precipitou-se em seu
encalço. Mas William pegou-o pela manga e, para distrair a atenção do velho,
apontou com a ponta da bengala para uma flor. Depois de a olhar por um
momento, meio confuso, o velho se dobrou e encostou o ouvido nela, como se
ouvisse uma voz vindo dali, pois começou a falar sobre as florestas do Uruguai
que ele tinha visitado centenas de anos antes em companhia das jovens mais
bonitas da Europa. Podia ser ouvido murmurando sobre as florestas do Uruguai
cobertas de pétalas brilhantes de rosas tropicais, rouxinóis, praias, sereias e
mulheres afogadas no mar, enquanto condescendia em ser levado adiante por
William, em cuja face a expressão de estoica paciência tornava-se pouco a
pouco mais drástica.


Seguindo-lhe os passos com atenção, a ponto de ficarem ligeiramente
intrigadas com seus gestos, vinham duas velhotas da classe média baixa, uma
gorda e pesada, a outra lépida e de rosto corado. Como a maioria das pessoas de
sua condição, elas eram francamente fascinadas por quaisquer sinais de
excentricidade que denunciassem um cérebro em desordem, especialmente
entre os ricos; mas estavam muito longe para saber ao certo se eram gestos
meramente excêntricos ou autenticamente loucos aqueles. Depois de
examinarem em silêncio, por um momento, as costas do velho, e de lançarem
uma à outra o mesmo olhar zombeteiro, continuaram elas com a montagem,
ambas cheias de energia, de seu muito complicado diálogo:
“Nell, Bert, Lot, Cess, Phil, Pa, ele diz, eu diz, ela diz, eu diz, eu diz, eu
diz…”
“Meu Bert, Sis, Bill, Vovô, o velho, açúcar,
Açúcar, farinha, peixe seco, verduras,
Açúcar, açúcar, açúcar.”


Pelo padrão de palavras em cascata a mulher pesadona olhou com uma
curiosa expressão para as flores que se mantinham na terra, serenas, firmes,
eretas. Viu-as como alguém que ao acordar de um sono profundo vê um
candelabro de bronze refletindo a luz de um modo estranho e fecha os olhos e
volta a abri-los e, vendo o candelabro ali de novo, finalmente acorda de vez e o
encara com toda a força que tem. A pesadona se deteve ao lado do canteiro oval
de flores e cessou até de fingir que ouvia o que a outra mulher ia dizendo. Ficou
ali, deixando que as palavras lhe caíssem por cima, balançando lentamente a
parte superior de seu corpo para a frente e para trás, olhando as flores. Sugeriu
então que elas sentassem nalgum canto para tomar seu chá.


O caracol a essa altura já havia considerado todas as possíveis maneiras de
atingir seu objetivo sem contornar a folha seca nem subir por cima dela. Além
do esforço necessário para escalar uma folha, restava-lhe a dúvida se a fina
textura que vibrava com estalidos tão alarmantes, quando tocadas só pela ponta
de seus chifres, aguentaria seu peso; por isso ele decidiu finalmente se arrastar
por baixo dela, pois havia um ponto em que a folha se arqueava bem acima do
solo para admiti-lo. Tinha acabado de enfiar a cabeça na abertura e já se estava
acostumando, enquanto considerava a altura do telhado, à luz terrosa e fresca que
através dele se filtrava, quando vieram duas outras pessoas passando no gramado
lá fora. Dessa vez eram ambos jovens, um rapaz e uma moça. Ambos no vigor
dos anos, ou mesmo nessa estação que precede o vigor dos anos, antes de as
dobras cor-de-rosa e aveludadas da flor se livrarem do seu viscoso invólucro,
quando as asas da borboleta, embora já crescidas, mantêm-se imóveis no sol.
“Que sorte que não é sexta-feira”, observou ele.


“Por quê? Você acredita em sorte?”
“Na sexta eles cobram meio xelim.”
“Mas o que é meio xelim? Isso não vale?”
“Isso o quê? O que você quer dizer com ‘isso’?”
“Oh, qualquer coisa — quero dizer —, você sabe o que é que eu quero
dizer.” Houve longas pausas entre cada uma dessas observações pronunciadas em
vozes inexpressivas e monótonas. De pé na beira do canteiro de flores, o casal se
mantinha imóvel, e juntos eles fizeram pressão para enfiar a ponta da sombrinha
dela bem fundo na terra mole. Tal ação e o fato de ele ter a mão sobre a dela
expressavam de um modo estranho seus respectivos sentimentos, como aquelas
palavras curtas e insignificantes expressavam também alguma coisa, palavras
com asas curtas para seu corpo tão prenhe de significado, inadequadas para leválas
longe e assim pousando desajeitadamente nos próprios objetos comuns que as
circundavam e que a seu tato inexperiente eram tão maciças: mas quem sabe
(desse modo pensaram eles, ao espetarem a sombrinha na terra) que precipícios
não estão ocultos nelas, ou que encostas de gelo não estão brilhando ao sol do
outro lado? Quem sabe? Quem já viu isso antes? Mesmo quando ela se
perguntava que tipo de chá poderia ser servido em Kew, sentia ele que alguma
coisa assomava por trás de suas palavras e por trás delas se mantinha, vasta e
sólida; e muito lentamente a neblina se levantou revelando — oh, meu Deus —,
que formas eram aquelas? — mesinhas brancas e também garçonetes que
olharam primeiro para ela e depois para ele; e houve uma conta que ele pagaria
com uma moeda real de dois xelins, real mesmo, totalmente real, garantia-se
ele, pondo os dedos na moeda em seu bolso, real para todo mundo, a não ser para
eles dois; aliás para ele já começava a parecer real; e aí — mas, sendo por
demais excitante continuar de pé e pensando, ele puxou a sombrinha para fora da
terra, com um safanão, e mostrou-se impaciente para achar o lugar em que se
tomava chá em companhia dos outros, como os outros.
“Vamos, Trissie; está na hora do chá.”


“Onde é que se toma chá por aqui?”, perguntou ela, com o mais estranho
frêmito de animação na voz, olhando vagamente ao redor, deixando-se arrastar e
arrastando sua sombrinha pela trilha na grama, virando a cabeça para este lado
ou aquele, esquecendo-se completamente do chá, querendo chegar lá embaixo e
depois mais baixo ainda, lembrando-se de orquídeas e grous entre flores
silvestres, um pagode chinês e uma ave de crista vermelha; e ele sempre a levála.
Assim um casal depois do outro passava pelo canteiro de flores, com muito
da mesma movimentação irregular e sem objetivo, e era envolvido em camada
após camada de vapor verde-azulado, no qual a princípio seus corpos tinham
substância e um pouco de cor, embora cor e substância se dissolvessem mais
tarde na atmosfera verde-azulada. Que calor fazia! Estava tão quente que até o
tordo preferiu ir pular à sombra das flores, com longas pausas entre um
movimento e o seguinte, como um passarinho mecânico; em vez de vagarem ao
acaso, as borboletas brancas dançaram umas sobre as outras, formando com
suas móveis camadas brancas o contorno de uma coluna de mármore
despedaçada sobre as flores mais altas; os telhados de vidro da casa das
palmeiras brilhava como se todo um mercado cheio de cintilantes sombrinhas
verdes tivesse aberto no sol; e no zumbido do aeroplano a voz do céu de verão
murmurava sua alma impetuosa.

 

Amarelo e preto, rosa e branco-neve, formas de todas essas cores, homens, mulheres e crianças foram localizadas por um segundo no horizonte e aí, vendo a extensão de amarelo que se abria na grama,
eles acenaram e foram à procura de sombra embaixo das árvores, dissolvendose
como gotas d’água na atmosfera amarela e verde, tingindo-a levemente de
vermelho e azul. Parecia que todos os corpos pesados e compactos tinham
baixado imóveis no calor e jaziam amontoados no chão, mas suas vozes partiam
deles tremulantes como se fossem chamas a espichar-se dos grossos corpos de
cera das velas. Vozes, sim, vozes sem palavras, quebrando de repente o silêncio
com um contentamento tão profundo, com paixão tão desejosa ou, nas vozes das
crianças, com tal frescor de surpresa; quebrando o silêncio? Mas não havia
silêncio; o tempo todo os ônibus motorizados viravam suas rodas e mudavam de
marcha; como um imenso jogo de caixinhas chinesas, todas em aço trabalhado,
dispondo-se incessantemente umas dentro das outras, a cidade murmurava; no
topo, vozes gritavam alto e as pétalas de miríades de flores espoucavam suas
cores no ar.


NOITE DE FESTA


Ah, mas vamos esperar um pouco! — A lua está no alto; o céu, aberto; e lá,
erguendo-se numa elevação contra o céu, com árvores por cima, está a terra. As
nuvens prateadas e fluidas contemplam ondas do Atlântico. Na esquina da rua, o
vento sopra de leve e me levanta o casaco, estendendo-o delicadamente no ar
antes de o deixar curvar-se e cair, como o mar que agora engrossa para rebentar
nos rochedos e depois se afasta de novo. — A rua está quase vazia; as venezianas
das janelas estão fechadas; as vidraças amarelas e vermelhas dos navios lançam
por um momento um reflexo sobre o azul flutuante. Doce é o ar da noite. As
criadas deixam-se ficar ao redor da caixa de correio ou namoram na sombra da
parede onde a árvore derrama sua chuvarada escura de flores. Tal como na
casca da macieira as mariposas tremem sugando açúcar pelo longo filamento
negro da probóscide. Onde estamos? Que casa pode ser a casa da festa? Todas
essas são pouco comunicativas, com suas janelas cor-de-rosa e amarelas. Ah —
dobrando a esquina, ali no meio, lá onde a porta está aberta —, espere um
momento. Vamos observar as pessoas, uma, duas, três, que se precipitam na luz
como as mariposas vão de encontro ao vidro de uma lanterna que ficou no chão
da floresta. Eis um táxi que passa depressa para o mesmo local. Dele desce uma
dama volumosa e pálida, que entra na casa; um senhor vestido para a noite, em
preto e branco, paga ao chofer e a segue, como se ele também estivesse muito
apressado. Venha, porque senão nos atrasamos.


Sobre todas as cadeiras há almofadinhas macias; nesgas tênues de gaze
enroscam-se por sobre sedas brilhantes; velas vertem chamas periformes nos
dois lados do espelho oval; há escovas de fino casco de tartaruga; frascos talhados
com lavores de prata. Pode isto ter sempre esta aparência — não é isto a
essência — o espírito? Alguma coisa dissolveu meu rosto. Coisa que aliás mal
aparece em meio à névoa prateada da luz das velas. Pessoas passam por mim
sem me ver. Como têm rostos, as estrelas parecem cintilar em seus rostos,
através da rósea coloração da carne. A sala está repleta de figuras vívidas,
contudo insubstanciais, que se postam eretas à frente de prateleiras listadas por
inumeráveis volumezinhos; cabeças e ombros maculam quinas de molduras
quadradas com douração; e a massa de seus corpos, lisos como estátuas de
pedra, conglutina-se contra uma coisa cinzenta, tumultuosa, brilhante também,
como que tendo água dentro, além das janelas sem cortinas.
“Venha para o canto e vamos conversar.”
“Maravilhosos! Maravilhosos seres humanos! Espiritualizados e
maravilhosos!”


“Porém eles não existem. Você não está vendo o lago, pela cabeça do
Professor? Não está vendo o cisne nadar, pela saia de Mary ?”
“Posso imaginar umas rosinhas de fogo espalhadas em torno deles.”
“As rosinhas de fogo não são senão como os vaga-lumes que vimos juntos
em Florença dispersos pela glicínia, átomos flutuantes de fogo, que vão
queimando enquanto voam — queimando, não pensando.”
“Queimando, não pensando. E assim todos os livros por trás de nós. Aqui
está Shelley — aqui está Blake. Basta jogá-los no ar para ver seus poemas
descerem como paraquedas dourados que rodopiam e brilham e vão deixando
cair sua chuva de florações em forma de estrelas.”
“Quer que eu lhe cite Shelley ? ‘Vamos! faz escuro no matagal sob a lua…’”
“Espere, espere! Não condense nossa atmosfera tão fina em gotas de chuva
salpicando a calçada. Vamos respirar mais um pouco no pó de fogo.”
“Vaga-lumes na glicínia.”
“Bem cruel, reconheço; mas veja como as grandes floradas surgem diante
de nós; vastos candelabros de ouro e roxo fosco pendentes dos céus. Você não
sente como a bela douradura nos tinge as coxas, quando entramos, e como as
paredes cor de ardósia oscilam pegajosamente sobre nós, quando nos
arremessamos, cada vez mais fundo, pelas pétalas, ou então se esticam como
tambores?”


“O professor se agiganta sobre nós.”
“Diga-nos, Professor…”
“Madame?”
“Em sua opinião é necessário escrever gramáticas? E a pontuação? A
questão das vírgulas de Shelley interessa-me profundamente.”
“Vamos sentar. Para dizer a verdade abrir janelas após o pôr-do-sol — eu
de pé com as minhas costas — conversa todavia agradável — Sua pergunta,
sobre as vírgulas de Shelley. Questão de certa importância. Ali, um pouco para a
sua direita. A edição da Oxford. Meus óculos! O castigo dos trajes de noite! Não
me aventuro a ler… Além do mais vírgulas… O tipo moderno é execrável.
Concebido para corresponder à exiguidade moderna; pois eu confesso que
encontro pouco de admirável nos modernos.”
“Nisso eu concordo inteiramente com o senhor.”
“Ah, é? Pois eu temia oposição. Na sua idade, nos seus — trajes.”
“Professor, eu encontro pouco de admirável nos antigos. Estes clássicos —
Shelley, Keats; Browne; Gibbon; haverá uma página que o senhor possa citar
inteira, um parágrafo perfeito, uma frase mesmo que não se possa ver
emendada pela pena de Deus ou do homem?”


“Xi, Madame! Sua objeção tem peso, mas falta-lhe sobriedade. Além do
mais a sua escolha de nomes… Em que câmara do espírito pode a senhora
consorciar Shelley e Gibbon? A não ser de fato pelo ateísmo de ambos — Mas
vamos ao ponto. O parágrafo perfeito, a frase perfeita; hum! — minha memória
— e depois meus óculos, que eu larguei lá por trás, no parapeito da lareira.
Garanto. Mas a sua crítica aplica-se à própria vida.”
“Certamente esta noite…”
“A pena do homem, imagino, poderia ter pouco trabalho para reescrever
isso. A janela aberta — de pé na corrente de ar — e, permitam-me sussurrá-lo, a
conversa destas senhoras, compenetradas e benevolentes, com opiniões exaltadas
sobre o destino do negro que está neste momento mourejando sob chicote para
extrair borracha para alguns dos nossos amigos envolvidos em amenas
conversações aqui. Para desfrutar da perfeição da senhora…”
“Concordo com o senhor. Há que excluir.”


“A maior parte de tudo.”
“Mas, para demonstrar corretamente isso, temos de descer à raiz das coisas;
pois temo que sua crença seja apenas um desses amores-perfeitos que são
comprados e plantados para uma noite de festa e de manhã já estão murchos. O
senhor mantém a exclusão de Shakespeare?”
“Madame, eu não mantenho nada. Estas senhoras me deixaram fora de
mim.”
“São mulheres benevolentes, que armaram seu acampamento à margem
de um dos riachos tributários de onde, colhendo ali caniços para flechas e
mergulhando-os bem em veneno, com o cabelo entrançado e a pele pintada de
amarelo, elas saem de vez em quando para plantá-los nos flancos do conforto;
tais são as mulheres benevolentes.”
“Os dardos que elas atiram ardem. Isso, somado ao reumatismo…”
“O professor já se foi? Coitado do velho!”
“Mas, na idade dele, como ainda poderia ter o que, na nossa, nós já estamos
perdendo? Quero dizer…”
“O quê?”


“Você não se lembra, bem na infância, quando, em conversa ou
brincadeira, se a gente pisava no atoleiro ou alcançava uma janela ao cair, uma
espécie de choque imperceptível congelava o universo numa sólida bola de
cristal que se tinha um instante em mãos? Tenho certa crença mística de que todo
o tempo passado e o futuro também, as lágrimas e cinzas das gerações,
coagularam-se numa bola; éramos então absolutos e inteiros; nada então era
excluído; e uma coisa era certa — felicidade. Mais tarde porém, quando a gente
os segura, esses globos de cristal se dissolvem: há alguém falando sobre negros.
Vê no que dá tentar dizer o que se tem em mente? Em contrassenso.”
“Precisamente. Porém que coisa triste é o bom senso! Que vasta renúncia
ele representa! Ouça um instante. Distinga uma das vozes. Agora. ‘Tão frio deve
parecer depois da Índia. Sete anos também. Mas o hábito é tudo.’ Isso é bom
senso. É acordo tácito. Todos fixaram os olhos em alguma coisa visível para cada
um. Não tentam mais olhar para a centelha de luz, a pequena sombra roxa que
pode ser terra fértil no horizonte, ou apenas um brilho esvoaçante na água. É tudo
compromisso — tudo segurança, o modo mais comum de relações entre seres
humanos. Por isso não descobrimos nada; nós paramos de explorar; paramos de
acreditar que há alguma coisa para descobrir. ‘Contrassenso’, você diz; querendo
dizer que eu não verei seu globo de cristal; e me envergonho um pouco de o
tentar.”


“A fala é uma rede velha e rasgada, pela qual os peixes escapam quando é
jogada neles. O silêncio talvez seja melhor. Venha até a janela, vamos tentar.”
“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas;
mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se
extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”
“Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para minha mão no peitoril da
janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica,
em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol,
deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos,
colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de
me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta
maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No
entanto é isso o que fazemos. Pense bem a esse respeito, a literatura é o registro
do nosso descontentamento.”
“Nossa insígnia de superioridade; nossa ambição de honrarias. Você há de
admitir que gosta mais das pessoas descontentes.”
“Gosto do som melancólico do mar distante.”
“Que história é essa de falar de melancolia em minha festa? É claro que, se
vocês ficarem cochichando num canto… Mas venham e deixem-me apresentálas.
Este é Mr. Nevill, que aprecia seus escritos.”


“Nesse caso — boa noite.”
“Nalgum lugar, esqueci o nome do jornal — qualquer coisa de sua autoria
— esqueço agora o título do artigo — ou era um conto? Você escreve contos?
Não é poesia que você escreve? São tantos os amigos da gente, e depois todo dia
está saindo alguma coisa que… que…”
“Que a gente não lê.”
“Bem, para ser honesto, por desagradável que possa parecer, ocupado
como estou o dia todo com assuntos de natureza odiosa, ou melhor, fatigante — o
tempo que eu tenho para a literatura eu dedico a…”
“Aos mortos.”
“Detecto ironia na sua correção.”
“Inveja, não ironia. A morte é da maior importância. Como os franceses, os
mortos escrevem muito bem, e, por alguma razão, podemos respeitá-los e sentir,
enquanto iguais, que são mais velhos e sábios, como nossos pais; o
relacionamento entre vivos e mortos é certamente dos mais nobres.”
“Ah, se você pensa assim, vamos falar dos mortos. Lamb, Sófocles, de
Quincey, Sir Thomas Browne.”
“Sir Walter Scott, Milton, Marlowe.”
“Pater, Tenny son.”
“Agora, agora, agora.”
“Tenny son, Pater.”
“Feche a porta; puxe as cortinas para que eu veja apenas seus olhos. Eu me
ponho de joelhos. Cubro o rosto com as mãos. Adoro Pater. Venero Tenny son.”
“Prossiga, filha.”


“É fácil confessar nossos erros. Mas que escuridão é tão fechada para
ocultar nossas virtudes? Eu amo, adoro — não, não consigo lhe dizer como minha
alma é uma rosa de devoção por — o nome treme em meus lábios —
Shakespeare.”
“Concedo-lhe absolvição.”
“No entanto, com que frequência se lê Shakespeare?”
“Com que frequência é a noite de verão impecável, a lua perfeita, os
espaços entre as estrelas profundos como o Atlântico? Com que frequência as
rosas mostram branco no escuro? A mente, antes de ler Shakespeare…”
“A noite de verão. Oh, isto sim é que é maneira de ler!”
“Rosas que ondulam…”
“Ondas quebrando…”
“Ares singulares da aurora vindos pelos campos afora para forçar as portas
da casa sem surtir efeito…”
“Deitando então para dormir, a cama é…”
“Um barco! Um barco! A noite inteira no mar…”
“Com estrelas que se postam a prumo…”


“E lá no meio do oceano nosso barquinho flutuando sozinho, isolado mas
sustentado, atraído pela compulsão das luzes nórdicas, seguro, cercado, dissipa-se
onde a noite repousa sobre a água; lá diminui e desaparece, e nós, já submersos,
lacrados na frieza das pedras lisas, abrimos nossos olhos de novo; traço, batida,
ponto, salpico, mobília de quarto, e a barulhada da cortina no trilho. — Eu ganho
a vida. — Apresente-me! Oh, ele conheceu o meu irmão em Oxford.”
“E você também. Venha para o meio da sala. Tem alguém aqui que se
lembra de você.”
“Em criança, querida. Você usava um vestidinho cor-de-rosa.”
“O cachorro me mordeu.”
“Ficar jogando paus no mar, já pensou que perigo? Mas sua mãe…”
“Na praia, na barraca…”
“Sorria sentada. Ela adorava cachorros. — Você conhece a minha filha?
Este é o marido dela. — Era Tray que ele chamava? o grande, o amarronzado,
porque havia um outro, o menor, que mordeu o carteiro. Posso ver isso agora.
Ah, as coisas de que a gente se lembra! Mas estou impedindo…”
“Oh, por favor (Sim, sim, eu escrevi, estou indo). Por favor, por favor. —
Pro inferno, Helen, interrompendo! E lá vai ela, nunca mais — abrindo caminho
entre as pessoas, ajeitando seu xale, descendo lentamente os degraus: foi-se! O
passado! o passado!…”


“Ah, mas ouça. Diga-me; estou com medo; tantos estranhos; alguns
barbudos; outros tão bonitos; ela esbarrou na peônia; caíram todas as pétalas. E
feroz — a mulher com aqueles olhos. Os armênios morreram. E os trabalhos
forçados. Por quê? Tanta tagarelice também; a não ser agora — cochichos —
todos nós devemos cochichar — nós estamos ouvindo — esperando — mas então
o quê? A lanterna acender! Cuidado com sua gaze! Certa vez uma mulher
morreu. Dizem que isso acordou o cisne.”


“Helen está com medo. Essas lanternas de papel acendendo e as janelas
abertas deixando a brisa entrar levantam nossos babados. Mas eu não estou com
medo das chamas, sabe. É o jardim — quero dizer, o mundo. Que me assusta.
Aquelas pequenas luzes lá longe, cada qual com um círculo de terra por baixo —
cidades e morros; e depois as sombras; os movimentos do lilás. Não fique
conversando. Vamos sair. Pelo jardim; sua mão na minha.”
“Vamos. Faz escuro no matagal sob a lua. Vamos, haveremos de enfrentá-las,
essas ondas de escuridão coroadas pelas árvores, que se erguem para sempre,
solitárias, trevosas. As luzes se levantam e caem; a água é rala como o ar; por
trás dela está a lua. Você afunda? Ou você se levanta? Você enxerga as ilhas?
Sozinha comigo.”


OBJETOS SÓLIDOS


A única coisa a se mover no vasto semicírculo da praia era um pontinho preto.
Quando ele chegou mais perto das vértebras e espinha do barco de sardinhas na
areia, tornou-se visível, por certa tenuidade em seu pretume, que o ponto tinha
quatro pernas; e tornou-se mais claro, de momento a momento, que era
composto pelas pessoas de dois jovens. Mesmo assim, em contorno contra a
areia, havia neles uma vitalidade inconfundível; um vigor indescritível na
aproximação e no retraimento dos corpos a indicar, malgrado sua insuficiência,
alguma discussão violenta que saía das bocas diminutas das cabecinhas redondas.
O que era confirmado, a uma inspeção mais atenta, pelas repetidas estocadas
que uma bengala vinha dando pelo lado direito. “Você então quer me dizer…
Você de fato acredita…”, assim, do lado direito, perto das ondas, parecia
sustentar a bengala, enquanto cortava pela areia tiras retas e longas.
“Que se dane a política!”, adveio claramente do corpo à esquerda e, ao
serem pronunciadas tais palavras, as bocas, narizes, queixos, bigodinhos, gorros
de lã, botas grosseiras, capotes de caça e meias axadrezadas dos dois falantes
tornaram-se cada vez mais distintos; a fumaça dos seus cachimbos subia pelo ar;
nada era tão sólido, tão vivo, tão rijo, rubro, viril e hirsuto quanto esses corpos por
quilômetros e mais quilômetros de mar e dunas de areia.


Lançaram-se os dois ao fundo das seis vértebras e espinha dorsal do barco
negro de sardinhas. Sabe-se como o corpo parece sacudir-se para livrar-se de
uma discussão e desculpar-se por uma exaltação de ânimo; lançando-se ao fundo
e exprimindo em seu afrouxamento de atitude a presteza para se ocupar de algo
novo — seja o que for que a seguir venha à mão. Assim Charles, cuja bengala
estivera, por quase um quilômetro, a retalhar a praia, começou a atirar pedaços
planos de lousa para ricochetear sobre a água; e John, que havia exclamado
“Que se dane a política!”, começou a meter seus dedos na areia, cada vez mais
fundo. Quanto mais ele enfiava a mão, que ao chegar além do pulso forçou-o a
puxar a manga um pouco mais para cima, mais seus olhos perdiam em
intensidade, ou melhor, o substrato de pensamento e experiência que dá
profundidade inescrutável aos olhos das pessoas adultas desaparecia, para deixar
apenas a clara superfície transparente, nada expressando além do espanto que os
olhos das crianças demonstram. Sem dúvida o ato de cavar na areia tinha alguma
coisa a ver com isso. Lembrava-se ele como, depois de cavar um pouco, a água
escorre pelas pontas dos dedos; o buraco então se torna um fosso; um poço; uma
nascente; um canal secreto para o mar. Enquanto ele decidia qual dessas coisas
fazer, seus dedos, ainda se movendo na água, enroscaram-se em torno de algo
duro — toda uma gota de matéria sólida — para desentocar pouco a pouco,
trazendo-o à superfície, um grande e irregular fragmento. Ao ser lavada a areia
que o cobria, surgiu um verde desmaiado. Era um caco de vidro, tão grosso a
ponto de se tornar opaco; tudo o que fosse forma ou gume já se gastara por
completo com o alisamento do mar, sendo impossível dizer assim se havia sido
de garrafa, vidraça ou copo; não era nada, a não ser vidro; era quase uma pedra
preciosa. Bastaria circundá-lo de uma borda de ouro, ou perfurá-lo com um
arame, para que se tornasse uma joia; parte de um colar, ou uma luz verde e
fosca sobre um dedo.

 

Afinal, talvez fosse realmente uma gema; alguma coisa usada por uma princesa negra que, sentada na popa da embarcação, ia arrastando o dedo pela água enquanto ouvia os escravos que cantavam ao conduzila
a remo através da baía. Ou então as tábuas de carvalho de uma arca do
tesouro elizabetana é que se haviam despregado, tendo suas esmeraldas, ao sabor
das ondas, para cá e para lá, finalmente chegado à praia. John se pôs a revirá-lo nas
mãos; e o ergueu na luz; ergueu-o de tal modo que sua massa irregular eclipsou o
corpo e o braço direito esticado de seu amigo. O verde se atenuava e turvava
ligeiramente ao ser mantido contra o céu ou o corpo. Causava-lhe prazer; intrigavao;
comparado ao vago mar e à costa tão imersa em brumas, era um objeto bem
duro, bem concentrado, bem definido.
Uma visão o perturbava agora — decisiva e profunda, tornando-o
consciente de que seu amigo Charles havia jogado todas as pedras planas ao
alcance da mão, ou chegado à conclusão de que não valia a pena fazê-lo. Lado a
lado eles comeram seus sanduíches. Tendo-o feito, já se punham de pé e sacudiamse
quando John pegou o caco de vidro para o olhar em silêncio. Charles olhou
também. Mas imediatamente viu que ele não era achatado e, enchendo seu
cachimbo, disse com a energia que rejeita um descabido esforço de pensamento:
“Para voltar ao que eu estava falando…”.


Ele não tinha visto ou, se visse, mal teria notado que John, após examinar
por um momento o vidro, como que em hesitação, o enfiara no bolso. Tal
impulso poderia também ter sido o impulso que leva uma criança a apanhar uma
pedrinha num caminho no qual elas se esparramam, prometendo-lhe uma vida
em segurança e quentura sobre a lareira do quarto, deleitando-se com a sensação
de poder e benignidade que uma ação como essa propicia e acreditando que o
coração da pedra pula de alegria quando se vê escolhido, dentre um milhão de
iguais, para gozar de tal felicidade, não de uma vida de umidade e frio na
estrada. “Bem que poderia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fui
eu, eu, eu!”


Estivesse ou não essa ideia na cabeça de John, o fato é que o pedaço de
vidro encontrou seu lugar em cima da lareira, onde solidamente se plantou sobre
uma pequena pilha de cartas e contas, servindo não só como excelente peso de
papéis, mas também como ponto natural de parada para o olhar do rapaz, quando
ele se desviava do livro. Visto repetidas vezes e de modo semiconsciente por uma
cabeça que pensa noutra coisa, qualquer objeto se mescla tão profundamente à
substância do pensar que perde sua forma verdadeira e se recompõe com
alguma diferença numa feição ideal que obseda o cérebro, quando menos se
espera. John se via assim atraído, quando saía para andar, pelas vitrines das lojas
de raridades, simplesmente por ter visto alguma coisa que o lembrava daquele
caco de vidro. Qualquer coisa, desde que fosse algum tipo de objeto, mais ou
menos redondo, talvez com uma chama agonizante imersa a fundo em sua
massa, qualquer coisa — porcelana, vidro, âmbar, rocha, mármore — até
mesmo o ovo liso e oval de uma ave pré-histórica serviria. Habituou-se ele
também a andar de olhos no chão, especialmente nas adjacências dos terrenos
baldios onde são jogados fora os refugos das casas. Tais objetos ocorriam lá com
frequência — jogados fora, de nenhuma utilidade para ninguém, disformes,
descartados. Em poucos meses ele fez uma coleção de quatro ou cinco
espécimes que foram para o mesmo lugar, parando em cima da lareira. Eram
úteis também, pois um homem que concorre ao parlamento, no limiar de uma
brilhante carreira, tem uma boa quantidade de papéis para manter em ordem —
comunicados a eleitores, plataformas políticas, apelos a subscrições, convites
para jantares e assim por diante.


Um dia, saindo de seus aposentos no Temple para pegar um trem, a fim de
falar aos eleitores, seus olhos bateram num objeto extraordinário que jazia
semioculto numa dessas bordaduras de grama que orlam as bases dos grandes
prédios forenses. Não podendo senão tocá-lo, através da cerca, com a ponta da
bengala, ele podia ver no entanto que era um caco de porcelana de forma bem
singular, quase tão parecido com uma estrela-do-mar como qualquer coisa
formada — ou acidentalmente quebrada — em cinco pontas irregulares, não
obstante inconfundíveis. Se em sua coloração predominava o azul, ao azul se
sobrepunham faixas ou manchas verdes de algum tipo, enquanto linhas
carmesins davam-lhe uma riqueza e um brilho da mais atraente espécie. John
estava decidido a possuí-lo; quanto mais perseverava nisso, mais no entanto ele
retrocedia. John por fim se viu forçado a voltar a seus aposentos para improvisar
uma argola de arame presa na ponta de uma vara, com a qual, à força de grande
habilidade e com muito cuidado, finalmente trouxe o pedaço de porcelana ao
alcance das mãos. Ao apanhá-lo, soltou uma exclamação de triunfo. E o relógio
bateu nesse momento. Já não lhe era mais possível cumprir seu compromisso. A
reunião foi realizada sem ele. Mas como o caco de porcelana se partira daquele
modo notável? Um exame cuidadoso deixou fora de dúvidas que a forma de
estrela era acidental, o que tornava tudo ainda mais estranho, e parecia
improvável que pudesse existir outro assim. Posto sobre a lareira, no lado
contrário ao do caco de vidro que havia sido retirado da areia, dava ele a
impressão de ser uma criatura de outro mundo — fantástica e extravagante
como um arlequim. Parecia estar fazendo piruetas no espaço, tremeluzindo
como uma estrela que pisca. Fascinado pelo contraste entre a porcelana, tão
vívida e alerta, e o vidro, tão contemplativo e calado, ele se perguntou, pasmo e
perplexo, como os dois tinham vindo a existir no mesmo mundo, para plantar-se,
além do mais, no mesmo cômodo, na mesma estreita faixa de mármore. Mas a
pergunta permaneceu sem resposta.


Ele então passou a frequentar os lugares em que os cacos de porcelana mais
proliferam, como as nesgas de chão que sobram entre as linhas de trem, os
terrenos de casas demolidas e as áreas públicas dos arredores de Londres. É
porém muito raro, é um dos mais raros dentre os atos humanos, que se jogue
porcelana de uma grande altura. É preciso achar em conjunção uma casa bem
alta e uma mulher tão impulsiva e de prevenções tão coléricas que é capaz de
atirar pela janela seu jarro ou pote, sem pensar em quem está embaixo.
Encontravam-se em abundância cacos de porcelana, porém quebrados na
trivialidade de um acidente doméstico, não de propósito, e sem caráter. Não
obstante ele se admirava com frequência, quando veio a entrar mais a fundo na
questão, da imensa variedade de formas a encontrar-se apenas em Londres,
havendo ainda mais motivos para especulação e espanto nas diferenças de
padrões e qualidade. Os melhores espécimes ele levaria para casa e colocaria
em cima da lareira, onde a função que lhes cabia era porém cada vez mais de
natureza ornamental, já que os papéis que necessitavam de um peso para os
manter sem voar tornavam-se progressivamente mais raros.
Descuidou-se de suas obrigações, talvez, ou as cumpria de um modo por
demais desatento, ou então seus eleitores, quando o visitavam, viam-se
desfavoravelmente impressionados pelo aspecto de sua lareira. Fosse como
fosse, não foi eleito para os representar no parlamento, e seu amigo Charles,
sentindo muito e se apressando a manifestar seu pesar, achou-o tão pouco
abalado com a derrota que não pôde senão supor que a questão era grave demais
para ele a entender de imediato.


Na verdade, John havia estado nesse dia nas áreas públicas de Barnes, onde
achara, sob uma moita de tojo, um pedaço de ferro bem pouco comum. Era, na
conformação, quase idêntico ao vidro, maciço e globuloso, mas tão frio e pesado,
tão metálico e negro, que evidentemente era estranho à Terra, tendo sua origem
numa das estrelas mortas, se não fosse em si mesmo escória de uma lua. Em seu
bolso, pesava muito; e pesou muito em cima da lareira, irradiando frio. No
entanto o meteorito ficou na mesma prateleira com o caco de vidro e a
porcelana em forma de estrela.


Quando seus olhos passavam de um para o outro, a determinação de possuir
objetos que chegassem a ultrapassar aqueles atormentava o rapaz.
Resolutamente ele se consagrou cada vez mais à procura. Se não ardesse de
ambição, se não estivesse convencido de ser recompensado algum dia por um
monte de lixo recentemente descoberto, as decepções que sofreu, sem falar do
cansaço e do ridículo, teriam-no feito desistir da empreitada. Munido de uma
bolsa e de uma vara comprida na qual se adaptava um gancho, revolveu todos os
monturos de terra; escarafunchou sob densos emaranhamentos de mato; buscou
por todas as vielas e espaços entre paredes onde se habituara a esperar descobrir
objetos desse tipo jogados fora. Tornando-se seus critérios mais rígidos e seu
gosto mais exigente, as decepções eram inumeráveis, mas sempre um brilho de
esperança, um caco de porcelana ou de vidro com alguma marca curiosa ou
curiosamente quebrado, o enganava. Passou-se um dia após o outro. E ele já não
era mais jovem. Sua carreira — isto é, sua carreira política — tornou-se coisa do
passado. As pessoas deixaram de visitá-lo. Ele era muito calado para que valesse
a pena convidá-lo para jantar. Nunca falava com ninguém sobre as ambições tão
sérias que tinha; a falta de compreensão dos outros transparecia no seu
comportamento.


Recostado em sua cadeira, ele agora observava Charles, que repetidas vezes
erguia as pedras em cima da lareira e enfaticamente as repunha em seu lugar
para marcar o que ele estava dizendo sobre a orientação do governo, sem nem
sequer notar a existência delas.
“Qual é a verdade, John?”, perguntou Charles de repente, virando-se para
encará-lo. “O que o levou a desistir de tudo assim sem mais nem menos?”
“Eu não desisti”, respondeu John.
“Mas agora você não tem mais chance nenhuma”, disse Charles com
aspereza.


“Nisso eu discordo de você”, disse John convictamente. Charles, olhando-o,
sentiu-se profundamente incomodado; foi possuído pelas dúvidas mais
extraordinárias; teve uma impressão esquisita de que os dois estavam falando de
coisas diferentes. Olhou em torno, a fim de encontrar algum alívio para sua
horrorosa depressão, mas a aparência desordenada do quarto o deprimiu ainda
mais. O que eram aquela vara e a velha bolsa de tapeçaria pendurada na parede?
E aquelas pedras? Ao olhar para John, algo fixo e distante em sua expressão o
alarmou. Ele sabia muito bem que a presença do amigo num palanque já estava
fora de questão.
“Bonitas pedras”, disse tão jovialmente quanto pôde; e foi dizendo que tinha
um compromisso a cumprir que ele se despediu de John — para sempre.


UM ROMANCE NÃO ESCRITO


Uma tal expressão de infelicidade era bastante em si mesma para fazer o olhar
deslizar pela beira do papel até o rosto da pobre mulher — insignificante sem
aquela expressão, quase um símbolo do destino humano com ela. A vida é o que
você vê nos olhos dos outros; a vida é o que as pessoas aprendem e, tendo
aprendido, nunca, embora o tentem esconder, deixam de estar conscientes de —
do quê? De que a vida é assim, ao que parece. Cinco rostos opostos — cinco
rostos maduros — e o conhecimento em cada um. Por estranho que seja, como
as pessoas querem disfarçar isso! Em todos esses rostos há sinais de reticência:
boca fechada, olhos sombrios, cada um dos cinco fazendo alguma coisa para
ocultar ou estultificar seu conhecimento. Um fuma; outro lê; um terceiro confere
anotações numa agenda; um quarto estuda o mapa da linha pendurado defronte;
e o quinto — o que há de terrível em relação ao quinto é que ela não faz
absolutamente nada. Fica vendo a vida. Ah, minha pobre, infeliz mulher, não
deixe de entrar no jogo — e, em atenção a todos nós, disfarce bem!
Ela olhou para cima, como se tivesse me ouvido, mexeu-se ligeiramente no
assento e suspirou. Parecia desculpar-se e ao mesmo tempo dizer-me: “Ah, se
você soubesse!”. Depois voltou a olhar para a vida. “Bem que eu sei”, respondi
em silêncio, dando uma olhada no Times para manter as aparências: “Eu sei de
tudo. ‘Paz entre Alemanha e potências aliadas declarada oficialmente ontem em
Paris — Signor Nitti, o primeiro-ministro italiano — um trem de passageiros
colidiu em Doncaster com um trem de carga…’Todos nós sabemos — The Times
sabe — mas fingimos não saber”. Meus olhos tinham se arrastado de novo pela
beirada do papel. Ela estremeceu, virou um braço para trás que estranhamente
levou até o meio das costas e balançou a cabeça. Mergulhei novamente no meu
grande reservatório de vida. “Pegue o que você gosta”, prossegui, “nascimentos,
casamentos, mortes, notícias da corte, os hábitos das aves, Leonardo da Vinci, o
crime de Sandhills, altos salários e o custo de vida — sim, o que você gosta”,
repeti, “está tudo aqui no Times!”. De novo e com infinito cansaço ela moveu de
lado a lado a cabeça, até que essa, como uma tampa que ao ser girada se exaure,
fosse encaixar-se em seu pescoço.


The Times não era proteção adequada contra um tal sofrimento como o
dela. Mas outros seres humanos impediam a comunicação. Contra a vida, nada
melhor do que dobrar o jornal para fazê-lo um quadrado crespo, grosso, perfeito,
impérvio até à própria vida. Feito isso, dei uma rápida olhada para cima, armada
de meu escudo. Mas através do escudo ela me viu; ela me olhou nos olhos, como
que procurando, bem lá no fundo, um sedimento de coragem que umedecia em
barro. Sua simples postura negava toda esperança, desconsiderava ilusões.
Fomos assim aos solavancos por Surrey para depois da divisa entrar em
Sussex. Mas eu, de olhos fitos na vida, não vi que os outros passageiros tinham
saltado, um por um, até que, a não ser pelo homem que estava lendo, nós
ficamos sozinhas. Chegamos à estação Three Bridges. Passamos lentamente pela
plataforma e paramos. Iria ele descer? Rezei para que sim e que não — e
finalmente pedi que ele ficasse. Nesse instante ele se levantou, embolou com
desprezo seu jornal, como coisa já liquidada, abriu a porta de arranco e nos
deixou a sós.


A infeliz mulher, inclinando-se um pouco para a frente, pálida e
descoloridamente se dirigiu a mim — falou de estações e feriados, de irmãos em
Eastbourne, da época do ano que, se era cedo ou tarde, já nem lembro. Mas
olhando por fim pela janela e vendo, como eu sabia, somente a vida, ela tomou
fôlego. “E o pior de tudo — é ficar fora de casa —”. Ah, agora a catástrofe se
aproximava, “Minha cunhada” — o azedume de seu tom era como limão em
aço frio, e falando, não para mim, mas para si mesma, ela resmungou: “Ela diria
que é bobagem — é isso que todos dizem”, e enquanto ia falando se repuxava
toda, como se a pele de suas costas fosse igual à de uma galinha depenada na
vitrine do açougue.


“Oh, aquela vaca!”, ela exclamou nervosamente, como se a grande vaca
estatelada no pasto a tivesse chocado e livrado de alguma indiscrição. Depois ela
tremeu, e depois de tremer fez o desajeitado movimento angular que eu já tinha
visto, como se, após o espasmo, algum ponto entre os ombros lhe coçasse ou
ardesse. Depois voltou a parecer a mais infeliz mulher do mundo, e eu, mais uma
vez, a censurei, se bem que não com a mesma convicção, pois se houvesse uma
razão, e se eu soubesse a razão, o estigma estaria removido da vida.
“Cunhadas”, disse eu…


Seus lábios se contraíram, como se fossem cuspir veneno na palavra; e
contraídos ficaram. Tudo o que ela fez foi apanhar sua luva para esfregá-la com
força num ponto da vidraça. Esfregou-a como se quisesse fazer sumir para
sempre alguma coisa — alguma mancha, alguma contaminação indelével. De
fato, a mancha lá continuou, malgrado toda sua esfregação, e novamente ela
afundou entortando o braço e tremendo, como eu já esperava. Algo impeliu-me
a apanhar minha luva para esfregar na minha janela, onde também havia uma
manchinha no vidro. A qual, malgrado minha esfregação, lá continuou. E o
espasmo então veio por dentro de mim; curvei meu braço e cocei no meio das
costas. Minha pele, também, era como a das galinhas, muito úmida, na vitrine do
açougueiro; um ponto entre meus ombros coçava e irritava, parecia melado,
parecia em carne viva. Será que eu conseguiria alcançá-lo? Tentei-o
subrepticiamente. Ela me viu. Um sorriso de infinita ironia, de infinito
sofrimento, perpassou-lhe pela face e sumiu. Mas ela havia comunicado,
partilhado seu segredo, transmitido seu veneno; não iria mais falar. Recostandome
em meu canto, protegendo dos olhos dela os meus olhos, vendo somente as
subidas e os vales, os cinza e os púrpuras, da paisagem de inverno, li sua
mensagem, decifrei seu segredo, lendo-a sob seu olhar fixo.


A cunhada é Hilda. Hilda? Hilda? Hilda Marsh — a exuberante Hilda, a
peituda, a matrona. Hilda já está à porta quando o cabriolé se aproxima, com
dinheiro na mão. “Pobre Minnie, mais do que nunca está parecendo um
gafanhoto — com a mesma capa que já estava no ano passado. Mas é isso, com
dois filhos, nos tempos que correm, não se pode fazer mais. Não, Minnie. Eu
entendo; o do senhor, seu cocheiro — não me venha com nenhuma das suas —
aqui está. Vamos lá, Minnie. Oh, eu podia até carregar você, quanto mais a sua
cesta!” Entram assim na sala de jantar. “Crianças, a tia Minnie.”


Garfos e facas afundam lentamente na vertical. Descem os dois (Bob e
Barbara), esticando bem as mãos; e voltam para suas cadeiras, olhando-se
enquanto retomam as bocadas. [Isso porém vamos pular; adornos, cortinas, prato
de porcelana em forma de trevo, retângulos amarelos de queijo, biscoitos
brancos quadrados — vamos pular — mas espere aí! Bem no meio do almoço
uma tremedeira daquelas; Bob olha para ela, de colher na boca. “Acabe logo a
sobremesa, Bob”; mas Hilda desaprova. “Que ideia é esta de se coçar?” Vamos
pular, pular, até chegarmos ao patamar do andar de cima; escada presa com
latão; linóleo gasto; oh, sim! o quartinho que dá para os telhados de Eastbourne —
telhados ziguezagueantes como as espinhas das lagartas, para lá e para cá,
riscados de amarelo e vermelho, feitos de ardósia preta azulada.]

 

Agora, Minnie, a porta está fechada; Hilda desce pesadamente ao porão; você desata as alças da
cesta, estende na cama a magra camisola, põe lado a lado os chinelos peludos de
feltro. O espelho — não, o espelho você evita. Certa metódica disposição dos
grampos de chapéu. Talvez haja alguma coisa na caixinha de conchas. Você
balança para ver; é o botão de madrepérola que no ano passado já estava lá — e
é tudo. Depois, sentando perto da janela, suspirar e fungar. Três horas de uma
tarde em dezembro; a chuva fina; uma luz baixa na claraboia de uma loja de
tecidos; outra alta num quarto de empregada — a qual se apaga. Com isso ela
não tem o que olhar. Um momento em branco — e depois, em que é que você
está pensando? (Eu, do outro lado, vou poder espiá-la; ela está dormindo ou está
fingindo que dorme; no que haveria então de pensar, sentando-se à janela às três
da tarde? Em saúde, dinheiro, contas; em seu Deus?) Sim, sentando-se bem na
beira da cadeira, a contemplar os telhados de Eastbourne, Minnie Marsh reza a
Deus. E está tudo muito bem; e ela também pode esfregar a vidraça, como que
para ver melhor a Deus; mas que Deus ela vê? Quem é o Deus de Minnie Marsh,
o Deus das vielas de Eastbourne, o Deus das três horas da tarde? Eu também vejo
telhados, vejo céu; mas esse modo de ver Deuses — mais como o presidente
Kruger do que como o príncipe Albert — é o que de melhor posso fazer por ele;
vejo-o numa cadeira, de sobrecasaca negra, também não tão alta; posso até
arranjar algumas nuvens que lhe sirvam de assento; arrastando-se entre elas, sua
mão aí empunha um cajado, ou será um bastão de comando? — preto, grosso,
espinhento — um velho e brutal tirano — o Deus de Minnie! Foi ele que mandou
a coceira e a tremedeira e a mancha? É por isso que ela reza? É a mancha do
pecado que ela limpa no vidro. Oh, ela cometeu algum crime!


Quanto aos crimes, posso escolher. Voam, passam arvoredos — campânulas
florescem no verão; naquela clareira lá, quando chega a primavera, florescem
prímulas. Foi num adeus, não foi, há vinte anos? Promessas quebradas? Não por
Minnie!… Ela foi fiel. Como ela cuidou da mãe dela! Todas as suas economias
em lápides — coroas em vidro — narcisos em jarras. Mas eu estou fugindo do
assunto. Um crime… Eles diriam que ela segurou sua dor, reprimiu seu segredo
— seu sexo, diriam eles — o pessoal da ciência. Mas que bobagem, botar nesta
mulher os arreios do sexo. Não — mais do mesmo. Descendo pelas ruas de
Croy don há vinte anos, voltas de fita violeta que cintilam à luz elétrica na vitrine
da loja de tecidos vão atrair seu olhar. Ela se atarda — passa das seis. Correndo
ainda pode chegar em casa. Ela entra pela porta de vaivém de vidro. É época de
liquidação. Bandejas rasas transbordam de fitas. Ela faz uma pausa, pega uma,
passa os dedos por outra com rosas em relevo por cima — mas não tem de
escolher, não precisa comprar, e cada bandeja traz suas surpresas. “Só fechamos
às sete”, e aí já são sete. Ela corre, vai correndo, chega em casa, mas é tarde
demais. Vizinhos — o médico — irmão pequeno — a chaleira — queimado —
hospital — morto — ou apenas o choque, a culpa? Ah, mas os detalhes não
importam! O que importa é o que vai com ela; a mancha, o crime, a coisa a
expiar, sempre lá entre os seus ombros. “Sim”, ela parece me dizer com a
cabeça, “é a coisa que eu fiz”.


Se fez ou não fez, ou o que foi que você fez, não me interessa; não é isso que
eu quero. As voltas de violeta na vitrine da loja — isso sim; um pouco fácil talvez,
um pouco lugar-comum — quando se tem tal sortimento de crimes, se bem que
muitos (deixem-me dar outra espiada — dormindo ainda, ou fingindo que
dorme! branca, de boca fechada, exausta — com um toque de obstinação, mais
do que se pensaria encontrar — e nenhum sinal de sexo) — muitos crimes porém
não são o seu; o seu crime foi banal; só a punição é solene; pois que agora a porta
da igreja se abre, o banco duro de madeira a recebe; nos ladrilhos do chão ela se
ajoelha; e todos os dias, verão e inverno, bem de tarde e muito cedo (como
agora), reza. Seus pecados caem todos, caem, caem para sempre. Mas a
mancha os recebe. Vermelha, protuberante, ardente. Depois ela começa a se
coçar. Criancinhas apontam. “Bob hoje no almoço” — Mas o pior são as velhas.
Você agora de fato não pode continuar aí rezando. Kruger afundou sob as
nuvens — como que encoberto pelo cinza líquido de um pincel de pintor, ao que
ele acrescenta um toque de preto — e até a ponta do bastão sumiu agora. É o que
sempre acontece! Basta você o ver, basta senti-lo, para que venha alguém
interromper. Agora é Hilda.


Como você a odeia! Ela é bem capaz de deixar a porta do banheiro
trancada a noite toda, e o que você quer é só água fria, às vezes, quando era uma
noite ruim, parece que adiantava lavar. No café da manhã tem John — as
crianças — o pior são as refeições, e há amigos às vezes — as samambaias não
dão para escondê-los — eles adivinham também; você então sai andando pela beiramar,
onde as ondas são cinzentas, e os papéis voam, e o vento bate nas cabines
verdes de vidro, e se alugam cadeiras por dois pence — é muito — pois deve haver
pregadores pela praia. Ah, este é negro — este é um homem gozado
— este é um homem com periquitos — coitados dos bichos! Não tem ninguém
pensando em Deus por aqui? — bem ali, no cais flutuante, com seu bastão —
mas não — não existe nada a não ser o cinza no céu ou, se o céu estiver azul, as
nuvens brancas o ocultam, e a música — é música militar — e para que eles
estão pescando? Pescam alguma coisa? Como as crianças olham! Bem, bem,
então casa, caminho de volta — “Caminho de volta para casa”. As palavras têm
significado; poderiam ter sido ditas pelo velho barbudo — não, não, na realidade
ele não falou; mas tudo tem significado — avisos pendurados na entrada das
casas — nomes por cima de vitrines de lojas — fruta vermelha em cestas —
cabeças de mulher em cabeleireiros — tudo diz “Minnie Marsh!”. Mas aqui há
uma contração. “Os ovos são mais baratos!” É o que sempre acontece! Lá ia eu
a levá-la pela cachoeira, direto para a loucura, quando, como um bando de
carneiros de sonho, ela se vira do outro lado e escorre entre os meus dedos. Ovos
são mais baratos. Levada às últimas nas costas do mundo, nenhum dos crimes,
padecimentos, rapsódias ou insanidades para Minnie Marsh; nunca atrasada para
o almoço; nunca surpreendida por um temporal sem sua capa; nunca totalmente
inconsciente da barateza dos ovos. E assim ela chega em casa — limpando as
botas.Eu a li direito? Mas a face humana — a face humana no topo da mais cheia
folha de impressão contém mais, comporta mais. Agora, de olhos abertos, ela
olha para fora; e no olho humano — como é mesmo que o definem? — há uma
quebra — uma divisão — quando você vê o galho, assim, a borboleta já voou —
a mariposa que paira à tardinha sobre a flor amarela — mova, levante sua mão,
bem longe, bem alto. Pois não levantarei minha mão. Pare então e não pare de
tremer, ó vida, alma, espírito, ó você qualquer coisa de Minnie Marsh — como
eu em minha flor — o falcão na chapada — sozinha, ou de que valeria a vida?


Pular da cama; ficar quieta de tardinha, ao meio-dia; ficar quieta na chapada. A
mão que esvoaça — que vai, que sobe! e depois volta à indecisão. Sozinha sem
ser vista; vendo tudo tão tranquilo lá em baixo, tão agradável. E ninguém vendo,
ninguém ligando. Os olhos dos outros nossas prisões; seus pensamentos nossas
gaiolas. Ar em cima, ar embaixo. E a lua e a imortalidade… Oh, mas eu dei um
tropeção. E você aí no canto — mulher — como é mesmo seu nome, Minnie
Marsh, um nome assim, não é? Você também levou um tombo? Lá está ela,
agarrada à sua flor; abrindo sua bolsa de mão, da qual tira uma casca vazia —
um ovo — quem estava dizendo que os ovos são mais baratos? Você ou eu? Oh,
foi você que disse isso, a caminho de casa, lembra, quando o senhor idoso,
abrindo de repente seu guarda-chuva — ou espirrando? Fosse como fosse,
Kruger se foi, e você veio pelo “caminho de volta para casa” e limpou suas
botas. E agora você estende nos joelhos um lenço no qual deixa cair pequenos e
angulosos fragmentos de casca de ovo — fragmentos de um mapa — um quebracabeça.
Bem que eu gostaria de conseguir juntá-los! Se ao menos você parasse
quieta. Ela porém já afastou os joelhos — o mapa está de novo em pedaços.

 

Pelas encostas dos Andes os blocos brancos de mármore vão saltando e ferindo,
esmagando até a morte toda uma tropa de carregadores espanhóis, com sua
escolta — o butim de Drake, ouro e prata. Mas, para voltar…
A quê? Aonde? Ela abriu a porta e, pendurando sua sombrinha na entrada —
isso nem precisa dizer: nem, também, o cheiro de carne que subia do porão;
ponto, ponto, ponto. Mas o que eu não posso eliminar assim, o que devo atacar e
dispersar, cabeça baixa, olhos fechados, com a coragem de um batalhão e a
cegueira de um touro, são, indubitavelmente, as figuras por trás das samambaias,
os caixeiros-viajantes. Ali os deixei todo esse tempo ocultos, na esperança de que
pudessem desaparecer, ou melhor, emergir ainda, como de fato deverão fazer,
se o conto continuar acumulando rotundidade e riqueza, destino e tragédia, como
cabe aos contos, arrastando consigo dois, senão três, caixeiros-viajantes e uma
touceira de aspidistra. “As folhas da aspidistra só encobriam uma parte do caixeiroviajante…”


Os rododendros o encobririam todo, e me dê nessa troca minha dose
de vermelho e branco, pela qual me empenho e definho; mas rododendros em
Eastbourne — em dezembro — e na mesa dos Marshes — não, não, eu não me
atrevo; tudo é uma questão de cascas e frascos, de samambaias e babados. Mais
tarde talvez haja um momento à beira-mar. Sinto além disso, quando
agradavelmente me empino pela treliça verde e por cima do glaciz de vidro
cortado, um desejo de espiar e espreitar o homem do outro lado — sendo esse o
único que eu consigo ver. É James Moggridge, que os Marshes chamam de Jimmy ?


[Espero que você prometa não se coçar, Minnie, enquanto eu não tiver
resolvido isso.] James Moggridge viaja vendendo — botões, vamos dizer? — mas
ainda não está na época de trazer de todos — os grandes, os pequenos em
grandes cartelas, os de olho de pavão, os de ouro fosco; há uns que parecem
montes de pedras, outros, espumas de coral — mas a época, como eu digo, ainda
não chegou. Ele viaja e, na quinta-feira, que é o seu dia em Eastbourne, vai fazer
suas refeições com os Marshes. Seu rosto vermelho, seus olhinhos sempre fixos
— porém jamais vulgares de todo — seu enorme apetite (isso é certo; ele não
olha para Minnie antes de o pão bem encharcado secar o molho), guardanapo
dobrado em diamante no peito — mas isso é primitivo e, cause o que causar ao
leitor, não creia em mim. Vamos seguir para a própria casa da família
Moggridge, vamos pô-la na ação. Lá, as botas de todos são remendadas, aos
domingos, pelo próprio James, que lê Truth. Mas qual é sua paixão? Rosas — e
sua esposa, enfermeira de hospital aposentada — interessante — pelo amor de
Deus, deixe-me ter uma mulher com um nome do qual eu goste! Mas não; ela é
um dos filhos em gestação da mente, ilícito, nem por isso menos amado, como os
meus rododendros. Em cada romance escrito, quantos morrem — os melhores,
os mais queridos, enquanto Moggridge vive. Culpa da vida. Aqui está Minnie,
comendo seu ovo no momento oposto e na outra extremidade da linha — já
passamos de Lewes? — Jimmy deve estar lá — ou por que ela se contorce?
Lá deve estar Moggridge — culpa da vida. A vida impõe suas leis; a vida
barra a passagem; há vida por trás da samambaia; a vida é um tirano; oh, mas
não a dona do pedaço! Não, pois lhe garanto que vim por minha livre vontade;
vim perseguida sabe Deus por qual compulsão por samambaias e frascos, mesa
cheia de borrões e garrafas imundas. Vim irresistivelmente para alojar-me
nalgum lugar da carne firme, da espinha rija, algum lugar em que eu possa
penetrar ou tomar pé da pessoa, da alma, do homem Moggridge.

 

A enorme estabilidade do arcabouço; a espinha como um osso de baleia, reta que nem um
pé de carvalho; as costelas que são galhos lançados; a pele de lona muito bem
esticada; as vermelhas reentrâncias; a sucção e regurgitação do coração;
enquanto a carne cai do alto em cubos marrons e a cerveja escorre para
espumar em sangue de novo — e assim chegamos aos olhos. Que estão vendo
uma coisa, por trás da aspidistra: preta, branca, desalentadora; agora outra vez o
prato; que por trás da aspidistra estão vendo uma mulher idosa; “A irmã de
Marsh. Hilda é mais o meu tipo”; e a toalha da mesa agora. “Marsh saberia o que
há de errado com os Morrises…” falam disso; chega o queijo; outra vez o prato;
vira-o ao contrário — dedos enormes; agora a mulher do outro lado. “A irmã de
Marsh — nem um pouco como Marsh; uma velha muito infeliz… Você devia era
ir cuidar das galinhas… Em nome de Deus, por que é que ela está se contorcendo
assim? Não foi o que eu disse? Meu Deus, meu Deus, essas velhotas! Santo
Deus!”


[Sim, Minnie; sei que você teve uma contração, mas um momento —
James Moggridge.]
“Meu Deus, meu Deus!” Que bonito é o som! como a pancada de um
malho em madeira bem seca, como a batida do coração de um baleeiro antigo
quando o mar engrossa e o verde se anuvia. “Meu Deus, meu Deus!” Que sino
tangente para acalmar e consolar a alma dos que se irritam e colocá-los em
linha, dizendo: “Adeus, amigos, boa sorte!” e depois: “Querem alguma coisa?”
pois se bem que Moggridge fosse capaz de colher uma rosa para ela, isto está
feito e acabado. E agora então o que é que vem? “Madame, vai perder seu
trem”, porque eles não perdem tempo.


Isto é o jeito de homem; isto é o som que reverbera; isto é a basílica de São
Paulo e os ônibus a motor. E nós para limpar as migalhas. Oh, Moggridge, você
então não vai ficar? Tem de sair? Vai passar por Eastbourne hoje à tarde num
desses coches apertados? É você que aí vai emparedado numa caixa de papelão
verde, você que às vezes puxa a cortina, que às vezes se senta bem solene para
olhar fixamente como uma esfinge, sempre com um toque sepulcral na
aparência, com alguma coisa de agente funerário, de caixão, de lusco-fusco em
cavalo e cavaleiro? Diga-me — mas as portas bateram. Nunca iremos nos
encontrar novamente. Adeus, Moggridge!


Sim, sim, já estou indo. Subindo para o alto da casa. Vou ficar um momentolá.
Como entra lama na cabeça e rola — que remoinho esses monstros deixam, as
águas agitadas, as moitas que ondulam, aqui verdes, além negras, até baterem na
areia, até que os átomos gradualmente se reagrupam, a jazida se depura e oque
se vê pelos olhos vem claro e calmo de novo, vindo aos lábios uma espécie de
prece pelos que partiram, de obséquias pelas almas das pessoas com as quais
trocamos algum sinal de cabeça, e que nunca voltaremos a ver.


Agora James Moggridge está morto, foi-se para sempre. Pois bem, Minnie
— “Não aguento mais isso”. Se ela disse tal frase — (Deixem-me dar uma
olhada nela, que varre a casca de ovo para os declives mais fundos). Com
certeza que disse, encostada na parede do quarto e brincando com as bolinhas
que orlam a cortina cor de clarete. Mas quando o eu fala com o eu, quem é que fala?
— a alma sepulta, o espírito empurrado para dentro, cada vez mais para dentro da
catacumba central; o eu que tomou véus e abandonou o mundo — um covarde
talvez, contudo belo de algum modo, quando em seu desassossego perpassa de
lampião na mão, a subir e descer nos corredores escuros. “Não consigo suportar
mais isso”, diz o espírito dela. “Aquele homem no almoço — Hilda — as
crianças.” Oh, céus, seu soluço! É o espírito a deplorar o próprio destino, o espírito
impelido de um lado para o outro, que ora se aloja nos tapetes que encolhem —
pontos de apoio instáveis — minguados frangalhos de todo o evanescente universo
— amor, vida, fé, marido, filhos, não sei que pompas e esplendores reluziam na
vida de menina. “Não para mim — não para mim.”
Mas aí — os bolinhos, o cachorro velho e careca? Esteiras de contas,
imagino eu, e a consolação da roupa de baixo. Se Minnie Marsh fosse atropelada
e levada ao hospital, as enfermeiras e até os médicos exclamariam… Há a vista
e a visão — há a distância — há no fim da alameda a mancha azul, ao passo que
o chá, afinal de contas, é ótimo, o bolinho está quente e o cachorro — “Benny, já
para a sua cesta, ouviu, e olhe o que a mamãe trouxe para você!”. Assim, tirando
a luva que está com o polegar puído, desafiando mais uma vez o espírito abusivo
e maligno que a obriga a tapar furos, você renova as fortificações, cosendo com
a lã cinzenta, passando-a para lá, para cá.


Passando-a para cá e para lá, de través e por cima, tecendo uma teia pela
qual Deus em pessoa — não, não pense em Deus! Como os pontos estão firmes!
Você deve estar orgulhosa da sua obra. Que nada a incomode. Que a luz caia
mansamente, que as nuvens mostrem vestes íntimas da cor do primeiro verde
das folhas. Que o pardal pouse no galho e derrube a gota de chuva pendurada no
ponto em que o galho entorta… Por que olhar para cima? Foi um som, uma ideia?
Oh, meu Deus! De novo à coisa que você fez, à bandeja com as fitas violeta? Mas
Hilda virá. Ignomínias, humilhações, oh! Feche a brecha.


Tendo remendado sua luva, Minnie Marsh vai guardá-la na cômoda. Fecha
com decisão a gaveta. Vejo-lhe o rosto de relance no espelho. O queixo está bem
erguido. Os lábios, repuxados. Ela amarra, a seguir, os sapatos. Depois toca na
garganta. Que broche usa? O de folha ou o em forquilha? E o que é que está
acontecendo? A não ser que eu esteja muito enganada, o pulso se acelerou, o
momento está chegando, as linhas disparam, Niágara à frente! É a crise! Que
Deus lhe acompanhe! Lá vai ela descendo. Coragem, coragem! Não a deixe de
enfrentar, torne-se nela! Pelo amor de Deus não fique esperando aí a passar mal
agora! Olhe a porta! Eu estou do seu lado. Fale! Confronte-a, confunda-lhe a
alma!


“Oh, desculpe-me! Sim, é aqui Eastbourne. Vou pegar para a senhora.
Deixe que eu pego pela alça.” [Mas, Minnie, apesar de mantermos as
aparências, eu li você direitinho — e estou com você agora.]
“É toda sua bagagem?”
“Com certeza, obrigada.”
(Mas por que você olha à sua volta? Hilda não virá à estação, nem John; e
Moggridge está num coche pelos confins de Eastbourne.)
“Vou esperar junto da mala, madame, é mais seguro. Ele disse que vinha
me esperar. Ah, olhe ele ali! É o meu filho.”


E juntos lá se vão eles.
Bem, mas estou confusa. Sem dúvida, Minnie, você sabe melhor que eu!
Um rapaz estranho… Pare! Eu mesma direi a ele — Minnie! Miss Marsh! —
apesar de eu não saber. Tem uma coisa esquisita no casaco dela, quando o vento
o levanta. Oh, não, não é verdade, mas que indecência… Veja como ela se
inclina quando eles chegam ao portão de saída. Ela achou a passagem. Qual é a
graça? E lado a lado eles vão descendo a estrada, depois que saem… Bem, meu
mundo caiu! No que me apoio? Que é que eu sei? Esta aí não é Minnie. Nunca
houve Moggridge. Quem sou eu? A vida nua, no osso.


No entanto uma última olhada neles — ele a descer do meio-fio e ela a seguilo
pela beira do grande prédio enchem-me de espanto — me inundam de novo.
Desconhecidas figuras! Mãe e filho. Quem são vocês? Por que andam rua abaixo?
Onde vão dormir esta noite, e depois, amanhã? Oh, como isso cresce e rola — me
revigora, me faz flutuar! É deles que eu parto. As pessoas me levam por aqui ou
por lá. A luz branca respinga, escorre. As janelas espelham. Cravos; crisântemos.
Hera em jardins escuros. Leite entregue na porta. Aonde quer que eu vá,
desconhecidas figuras, vejo vocês dobrando a esquina, mães e filhos; vocês,
vocês, sempre vocês. Às pressas, vou atrás. Imagino que aqui já seja o mar. É
cinzenta a paisagem; cinzenta e fosca como a cinza; a água mexe e murmura. Se eu
cair de joelhos, se eu passar pelo ritual, com os antigos trejeitos, são vocês, ignotas
figuras, são vocês que eu adoro; se abro os braços, são vocês que eu recebo, é
você que eu puxo para mim — mundo adorável.


CASA ASSOMBRADA

A qualquer hora que você acordasse havia alguma porta batendo. De quarto em
quarto eles iam, e de mãos dadas, erguendo aqui, abrindo ali, certificando-se —
um casal de fantasmas.
“Deixamos aqui”, ela disse. E ele acrescentou: “Oh, mas aqui também!”.
“No andar de cima”, murmurou ela. “E no jardim”, sussurrou ele. “Silêncio”,
disseram ambos, “porque senão vamos acordá-los”.
Mas não era que nos acordassem. Oh, não. “Eles estão procurando; estão
abrindo a cortina”, bem que eu poderia dizer, e assim ler ainda uma ou duas
páginas. “Agora acharam”, saberia então com certeza, parando o lápis na
margem. E aí, cansada de ler, poderia me levantar para ir ver com meus olhos a
casa toda vazia, as portas todas abertas, só as pombas da mata borbulhando de
contentamento e a zoada da máquina de debulhar que vem da fazenda. “Por que
foi que entrei aqui? O que era que eu queria encontrar?” Minhas mãos estão
vazias. “Talvez lá em cima?” As maçãs estavam no sótão. E assim de novo para
baixo, o jardim tranquilo como sempre, só o livro que escorregou para a grama.
Na sala de visitas o encontraram porém. Sem que alguém pudesse vê-los
jamais. As vidraças refletiam maçãs, refletiam rosas; todas as folhas eram
verdes no vidro. A maçã se limitava a virar seu lado amarelo, se as folhas se
mexessem na sala. Entretanto, no momento seguinte, se a porta fosse aberta,
estendia-se no chão, descia pelas paredes, pendia do teto — o quê? Minhas mãos
estavam vazias. A sombra de um tordo atravessou o tapete; dos poços de silêncio
mais fundos a pomba da mata extraiu sua bolha de som. “Em segurança, em
segurança”, suavemente bate o pulso da casa. “O tesouro enterrado; o quarto…”
para o pulso de repente. Oh, então era o tesouro enterrado?


Um momento depois a luz se apaga. Talvez lá fora no jardim? Mas as
árvores protelam a escuridão por causa de um peregrino raio de sol. Tão fino, tão
raro, cravado tão friamente sob a superfície, o raio que eu sempre procurei
queimava além da vidraça. A morte era o vidro; a morte estava entre nós dois;
primeiro indo à mulher, há centenas de anos, deixando a casa, lacrando todas as
janelas; os quartos se escureciam. Ele as deixava, mulher e casa, ia para o Norte,
ou para o Leste, viu o giro das estrelas no céu do Sul; procurou pela casa, achou-a
afundada na região dos Downs. “Em segurança, em segurança”, batia
alegremente o pulso da casa. “O tesouro é seu.”


O vento ruge na alameda. As árvores encurvam, dobram-se de variadas
maneiras. O luar se esparrama e respinga forte na chuva. Mas direto da janela
vem o facho de luz. A vela queima tesa e quieta. Pervagando pela casa, abrindo
as janelas, cochichando para não nos despertar, o casal de fantasmas procura sua
alegria.
“Aqui nós dormimos”, diz ela. E ele acrescenta: “Beijos sem conta”.
“Acordando de manhã…” “Com o prateado entre as árvores…” “Lá em
cima…” “Lá no jardim…” “Quando o verão chegou…” “Na época de neve do
inverno…”. E bem ao longe as portas vão se fechando, batendo lentamente como
um coração a pulsar.


Eles chegam mais perto; param na entrada. O vento sopra, a chuva escorre
prateada no vidro. Nossos olhos se toldam; não ouvimos passos ao lado; não
vemos mulher alguma abrindo sua fantasmal vestimenta. Já ele protege o
lampião com as mãos. “Olhe só”, sussurra. “Dormem a fundo. Com amor nos
lábios.”
Dobrando-se, mantendo acima de nós seu lampião de prata, longa e
profundamente eles olham. Longa é a pausa que fazem. O vento impele certeiro;
a flama enverga fragilmente. Fachos fortes de luar cruzam pelo chão e a parede
e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que
ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.
“Em segurança, em segurança”, bate orgulhoso o coração da casa. “Muitos
anos…”, suspira ele. “De novo você me achou”. “Aqui”, murmura ela,
“dormindo; no jardim, lendo; rindo, rolando maçãs no sótão. Foi aqui que nós
deixamos nosso tesouro…”. Dobrando-se, sua luz ergue em meus olhos as
pálpebras. “Em segurança! em segurança! em segurança!”, bate descontrolado
o pulso da casa. E eu, despertando, grito: “Oh, é isto o seu — tesouro enterrado? A
luz no coração”.


UMA SOCIEDADE
Eis aqui como tudo aconteceu. Sentadas um dia depois do chá, éramos cinco ou
seis. Umas olhavam pela rua para as vitrines de uma chapelaria onde a luz ainda
brilhava intensamente sobre plumas escarlates e chinelos dourados.
Outras estavam ociosamente ocupadas em construir pequenas torres de
açúcar na borda da bandeja de chá. Passado um tempo, pelo que eu lembro,
juntamo-nos em volta do fogo e começamos a elogiar os homens, como de
hábito — tão fortes, tão nobres, tão brilhantes, tão corajosos, tão belos — como
invejávamos as que por bem ou por mal deram um jeito de se ligar para sempre
a um deles! — quando Poll, que não tinha dito nada, explodiu em lágrimas. Poll,
devo dizer-lhes, sempre foi esquisita. A começar por seu pai, homem estranho.
Deixou-lhe uma fortuna em testamento, mas com a condição de que ela lesse
todos os livros da Biblioteca de Londres. Fizemos o possível para a consolar;
embora soubéssemos, no íntimo, que era tudo inútil. Pois, apesar de nós
gostarmos de Poll, ela não é lá essas coisas; anda de sapatos desamarrados; e
devia estar pensando, quando elogiamos os homens, que nunca um deles iria
querer casar com ela. Por fim enxugou as lágrimas. Mas nós, por algum tempo,
não entendíamos nada do que ela estava dizendo. Em sã consciência era muito
estranho. Disse-nos que, como sabíamos, ela passara a maior parte do seu tempo
lendo, na Biblioteca de Londres. Contou-nos que tinha começado pela literatura
inglesa, no andar de cima; e que avançava a passos firmes para chegar a The
Times, no de baixo. Mas a meio caminho, ou talvez apenas a um quarto,
aconteceu uma coisa horrível. Ela não conseguia mais ler. Os livros não eram o
que nós pensávamos. “Os livros”, gritou ela, pulando em pé e falando com uma
intensidade de desolação que nunca hei de esquecer, “são em sua maior parte
indescritivelmente ruins!”.


E gritamos nós, naturalmente, que Shakespeare escreveu livros, e Milton, e
Shelley.
“Ah, sim”, ela interrompeu. “Estou vendo que foram bem ensinadas. Mas
vocês não são leitoras da Biblioteca de Londres.” Seus soluços aqui se
renovaram. Por fim, melhorando um pouco, ela abriu um dos livros da pilha que
sempre levava ao lado — intitulado “De uma Janela” ou “Num Jardim” ou mais
ou menos assim e escrito por um homem chamado Benton ou Henson ou algo
semelhante. E leu as primeiras páginas. Nós ouvimos em silêncio. “Mas isso aí
não é um livro”, alguém disse. Ela então escolheu outro. Dessa vez era um livro
de história, mas esqueci o nome do autor. Nossa trepidação crescia à medida que
ela avançava. Nem uma palavra ali parecia ser verdade, e o estilo no qual estava
escrito era execrável.


“Poesia! Poesia!”, gritamos impacientemente. “Leia poesia!” Não consigo
descrever a desolação que se abateu sobre nós quando ela abriu um volumezinho
e recitou a baboseira sentimental e verbosa que nele estava contida.
“Deve ter sido escrito por mulher”, alegou uma de nós. Mas não. Ela nos
disse que o autor era um jovem, um dos poetas mais famosos do momento. Que
vocês mesmos imaginem o choque que essa descoberta causou. Apesar de
gritarmos todas e de pedirmos todas que não lesse mais, ela insistiu e nos leu
trechos das Vidas dos Presidentes da Câmara dos Pares. Quando acabou, Jane, a
mais velha e sábia de nós, pôs-se de pé para se declarar não convencida.
“Por quê?”, perguntou, “se os homens escrevem porcarias assim, deveriam
nossas mães ter perdido sua juventude para trazê-los ao mundo?”.


Ficamos todas em silêncio; e a pobre Poll, no silêncio, pôde ser ouvida aos
soluços: “Por que, por que meu pai me ensinou a ler?”.
Clorinda foi a primeira a demonstrar sensatez. “É tudo culpa nossa”, disse.
“Todas nós sabemos ler. Mas nenhuma, a não ser Poll, já se deu ao trabalho de o
fazer. Eu, quanto a mim, sempre achei que o dever de uma mulher era passar
sua juventude tendo filhos. Eu venerava minha mãe, que teve dez; e mais ainda
minha avó, que teve quinze; minha própria ambição, confesso, era ter vinte.
Passamos por todas essas épocas supondo que os homens fossem igualmente
industriosos e que suas obras eram de igual mérito. Enquanto criávamos os filhos,
eles, supúnhamos, criavam livros e quadros. Povoamos o mundo. E eles o
civilizaram. Mas agora que nós sabemos ler, o que nos impede de julgar os
resultados? Antes de trazermos outra criança ao mundo, temos de nos jurar que
vamos descobrir como o mundo é.”


Constituímo-nos assim numa sociedade de fazer perguntas. Uma de nós iria
visitar um navio de guerra; outra iria se esconder no gabinete de um erudito; uma
terceira assistiria a um encontro de homens de negócios; e todas deveríamos ler,
ver quadros, ir a concertos, andar de olhos bem abertos nas ruas e fazer
perpetuamente perguntas. Éramos muito jovens. Vocês podem calcular nossa
ingenuidade se eu lhes disser que naquela noite, antes de nos despedirmos,
concordamos que o objetivo da vida era formar boas pessoas e produzir bons
livros. Nossas perguntas seriam direcionadas para saber até que ponto esse
objetivo era atualmente alcançado pelos homens.

 

Prometemo-nos solenemente que nenhuma de nós teria um filho antes de nos darmos, todas, por satisfeitas.
Lá então fomos nós, umas para o Museu Britânico; outras à Marinha de
Guerra; umas a Oxford; outras a Cambridge; visitamos a Real Academia e a
Tate; ouvimos música moderna em salas de concerto, fomos ao Tribunal de
Justiça e vimos peças novas. Nenhuma de nós jantava fora sem fazer ao seu
acompanhante certas perguntas, anotando cuidadosamente as respostas. De vez
em quando nos encontrávamos para comparar nossas observações. Oh, esses
encontros, que farra! Nunca ri tanto quanto no dia em que Rose leu suas
anotações sobre “Honra” e descreveu como ela tinha se vestido de Príncipe
Etíope e entrado a bordo de um dos navios de Sua Majestade. Descobrindo o
embuste, o Capitão foi visitá-la (disfarçado agora de cavalheiro à paisana) e
exigiu que a afronta à honra fosse reparada. “Mas como?”, ela perguntou.
“Como?”, ele berrou. “Com a bengala, é claro!” Vendo que ele estava fora de si,
de tanta raiva, e crendo que seu último momento havia chegado, ela se dobrou e
ganhou, para seu espanto, seis tapinhas no traseiro. “A honra da Marinha
Britânica está salva!”, gritou ele, e ela, reerguendo-se, viu que o suor escorria por
seu rosto e que sua mão direita estendida estava trêmula. “Calma lá”, exclamou,
assumindo uma atitude e imitando a ferocidade da própria expressão dele: “Falta
salvar a minha!”. “É como diz um cavalheiro”, retrucou ele, e caiu em profundo
pensamento. “Se seis palmadas vingam a honra da Marinha de Guerra de Sua
Majestade”, ele ponderou, “quantas vingarão a honra de um particular?”. E disse
que preferia levar o caso aos oficiais de sua arma. Ela respondeu altivamente
que não podia esperar. Ele louvou sua suscetibilidade. “Deixe-me ver”, exclamou
de repente, “o seu pai tinha carruagem?”. “Não”, disse ela. “Ou um cavalo de
raça?” “Tínhamos um burro”, considerou, “que puxava a ceifadeira”. A face
dele então se iluminou. “O nome de minha mãe…”, ela acrescentou. “Pelo amor
de Deus, não mencione o nome de sua mãe!”, gritou ele, trêmulo como uma
vara verde e rubro até a raiz dos cabelos, e só depois de uns dez minutos ela o
pôde induzir a prosseguir. Por fim ele decidiu que se ela lhe desse quatro
palmadas e meia no meio das costas e num ponto indicado por ele mesmo (a
meia concedida, disse, em reconhecimento ao fato de o tio de sua bisavó ter sido
morto em Trafalgar), sua opinião era que a honra dela estaria nova em folha. E
assim foi feito; retirando-se a um restaurante, eles beberam duas garrafas de
vinho, pelas quais ele insistiu em pagar; e se despediram com protestos de eterna
amizade.


Tivemos depois o relato de Fanny sobre sua ida ao Tribunal de Justiça. Na
primeira visita ela já chegara à conclusão de que os juízes ou eram feitos de
madeira ou personificados por grandes animais semelhantes ao homem que
foram treinados para mover-se com extrema dignidade, resmungar e balançar a
cabeça. Para testar sua teoria ela abriu um lenço cheio de moscas-varejeiras no
momento crítico de um julgamento, mas não foi capaz de julgar se as criaturas
davam sinais de humanidade, pois o zumbido das moscas induziu a um sono tão
pesado que ela só acordou a tempo de ver os prisioneiros levados para as celas
embaixo. Mas pelo seu depoimento decidimos por voto ser injusto supor que os
juízes são homens.


Helen foi à Real Academia; porém, quando solicitada a fazer seu relato
sobre os quadros, começou a recitar, lendo num volume azul claro: “Oh, o toque
de mão que se esvaece, o tom de voz que apazigua. É a casa à caça, a casa à
espreita na colina. Ele deu um puxão em suas rédeas. Pouco dura o doce amor.
Primavera, meiga primavera, gentil rainha do ano. Estar na Inglaterra, ó, quando
lá é abril. Aos homens a pugna, às mulheres o pranto. A trilha do dever é o
caminho da glória…”. Não podíamos mais ouvir tanto palavreado.
“Não queremos mais poesia!”, gritamos.
“Filhas da Inglaterra!”, ela começou, mas logo a puxamos para baixo,
derramando-se nela, na refrega, uma jarra d’água.


“Por Deus!”, ela exclamou, sacudindo-se como um cachorro. “Agora eu
vou rolar no tapete e ver se consigo me livrar do que ainda resta da bandeira do
Reino Unido. Depois talvez…”, e nesse ponto, com toda a energia, rolou mesmo.
Ao levantar-se, começava a nos explicar como são os quadros modernos quando
Castalia a interrompeu.
“Qual o tamanho médio de um quadro?”, perguntou. “Talvez uns setenta por
uns noventa centímetros”, ela disse. Castalia tomava notas enquanto Helen falavae,
feito isso, quando tentávamos evitar uma o olhar da outra, levantou-se e disse:
“Seguindo o que vocês me mandaram, fiquei a semana passada em Oxbridge,
disfarçada de arrumadeira. Tive assim acesso aos quartos de vários professores e
agora vou tentar lhes dar uma ideia — só que”, interrompeu-se, “não sei como
fazer. É tudo tão esquisito. Esses professores”, continuou, “vivem em grandes
casas construídas no meio de terrenos gramados, cada qual numa espécie de cela
à parte. No entanto eles têm todo o conforto, todas as comodidades. Basta apertar
um botão ou acender uma lâmpada. Seus papéis estão sempre perfeitamente
arquivados. Livros não faltam. Não há crianças nem animais, salvo uma meia
dúzia de gatos errantes e um velho passarinho de canto — um macho. Lembro”,
contou ela, “de uma tia minha que morava em Dulwich e criava cactos. Chegavase
à estufa pela dupla sala de visitas, e lá, sobre os canos de água quente, eles se
achavam às dúzias, feios, atarracados, miúdos, espinhentos, cada qual em seu vaso.
O aloé só florescia uma vez em cem anos, disse minha tia. Mas ela morreu antes
de isso acontecer…”. Nós lhe pedimos que não fugisse do assunto. “Bem”, retomou
ela, “quando o professor Hobkin estava fora eu examinei o trabalho de sua vida,
uma edição de Safo. É um livro de aparência muito estranha, com um meio palmo
de grossura, nem tudo de Safo. Oh, não. A maior parte é uma defesa da castidade
de Safo, que certos alemães haviam
negado, e posso garantir-lhes qual não foi meu espanto ante o ardor com que
esses dois cavalheiros discutiram, a erudição que demonstraram, a prodigiosa
inocência com que se altercaram quanto ao uso de determinado implemento que
para mim era em todos os respeitos semelhante a um grampo de cabelo;
especialmente quando a porta se abriu e o próprio Professor Hobkin apareceu.
Um senhor idoso, bondoso, afável, mas que podia ele saber de castidade?”. Nós
não a entendemos direito.


“Não, não”, protestou ela, “ele é a honra em pessoa, tenho certeza — não se
parece nem um pingo com o capitão de Rose. Eu estava pensando era nos cactos
de minha tia. Que poderiam eles saber de castidade?”.
De novo lhe dissemos para não se afastar do ponto — contribuíam os
professores de Oxbridge para formar boas pessoas e produzir bons livros? — o
objetivo da vida.


“E essa agora!”, exclamou ela. “Nem lembrei de perguntar. Nunca me
ocorreu que eles fossem capazes de formar ou produzir qualquer coisa.”
“Creio”, disse Sue, “que você cometeu um erro. Provavelmente o professor
Hobkin era ginecologista. Um erudito é um tipo de homem muito diferente. O
erudito transborda de inventividade e bom humor — talvez um pouco dependente
do vinho, mas e daí? — um ótimo companheiro, generoso, sutil, imaginativo —
como o bom senso indica. Pois ele passa sua vida na companhia dos melhores
seres humanos que jamais existiram.
“Hum”, disse Castalia. “Talvez fosse melhor eu voltar lá e tentar de novo.”
Aconteceu de eu me achar sozinha, cerca de três meses depois, quando
Castalia entrou. Não sei bem o que em sua aparência me impressionava; mas
não pude refrear-me e, precipitando-me pelo quarto, apertei-a nos braços. Não
somente ela estava muito bonita; parecia também irradiar alegria. “Que ar mais
feliz!”, exclamei enquanto se sentava.


“Estive em Oxbridge”, ela disse.
“Fazendo perguntas?”
“Respondendo”, retrucou.
“Não quebrou nosso voto, não é?”, disse eu, ansiosa, notando algo em sua
expressão.
“Oh, o voto”, disse ela descuidadamente. “Eu vou ter um filho, se é isso que
você quer saber. Você não pode imaginar”, explodiu, “como é estimulante, como
dá satisfação, como é bonito…”.
“O quê?”, perguntei.


“Ah — bem — responder perguntas”, respondeu ela meio confusa. E aí me
contou a história toda. Mas, no meio de uma narrativa que me interessava e
excitava mais do que qualquer outra coisa que eu jamais tinha ouvido, deu ela o
mais estranho dos gritos, mistura de oi e opa…
“Castidade! Castidade! Onde está minha castidade?”, gritava. “Socorro, me
acudam! A garrafa de cheiro!”
Não havia nada no quarto, a não ser um frasco com mostarda, que eu já
estava a ponto de lhe administrar quando ela recuperou a calma.
“Você devia ter pensado nisso há três meses”, disse eu severamente.
“É verdade”, retrucou ela. “Não adianta muito pensar nisso agora. Por sinal,
pôr em mim esse nome de Castalia foi uma ideia infeliz de minha mãe.”
“Oh, Castalia, sua mãe…” Quando eu mal começava ela alcançou o pote
de mostarda.
“Não, não, não”, disse balançando a cabeça. “Se você fosse mesmo casta,
teria soltado um berro ao me ver — não ia se atirar pelo quarto para me tomar
em seus braços. Não, Cassandra. Nenhuma de nós duas é casta.” E assim nós
fomos conversando.


Enquanto isso o quarto foi se enchendo, pois era o dia marcado para
discutirmos os resultados de nossas observações. Todas, parecia-me, sentiam-se
como eu em relação a Castalia. Beijavam-na, diziam como estavam contentes
por revê-la. Por fim, com o grupo completo, Jane se levantou, disse que era hora
de começar. E começou por lembrar que já havia cinco anos que vínhamos
fazendo perguntas e que, apesar de os resultados não serem conclusivos — aí
Castalia me deu uma cotovelada, cochichando não estar assim tão certa disso.
Depois se levantou, interrompeu Jane no meio de uma frase e disse:
“Antes de você falar mais, quero saber — posso ficar no quarto? Porque”,
acrescentou, “tenho de confessar que sou uma mulher impura”.
Todas olharam para ela espantadas.
“Você vai ter um filho?”, perguntou Jane.


Ela confirmou com a cabeça.
Foi extraordinário ver a expressão dos diferentes rostos. Uma espécie de
zumbido percorreu o quarto, no qual eu pude distinguir palavras como “impura”,
“bebê”, “Castalia”, e assim por diante. Jane, ela mesma consideravelmente
abalada, foi que nos colocou a questão:
“Ela deve sair? É impura?”.
A barulhada que se fez pelo quarto poderia ter sido ouvida na rua.
“Não! Não! Não! Ela fica! Impura? Bobagem!” Mas percebi que algumas
das mais novas, meninas de dezenove ou vinte, tinham ficado bem por trás, como
se a timidez as dominasse. Todas nós a rodeamos, fazendo-lhe perguntas, e por
fim vi uma das novas, até então lá no fundo, aproximar-se timidamente e dizerlhe:
“Mas então o que é castidade? É uma coisa boa, é uma coisa ruim ou afinal
não é nada?” E ela respondeu tão baixo que nem pude entender o que dizia.
“Fiquei chocada, sabe”, disse outra, “mas só por uns dez minutos”.
“Em minha opinião”, disse Poll, que estava se tornando irritável de tanto ler
na Biblioteca de Londres, “a castidade não é nada a não ser ignorância — um
estado de espírito dos mais lamentáveis. Na nossa sociedade só deveríamos
admitir as não castas. Proponho que Castalia seja a nossa Presidente”.
O que causou profunda dissensão.


“É tão injusto marcar uma mulher por castidade como por não castidade”,
disse Poll. “Muitas de nós nem têm a oportunidade. Além do mais, não creio que
a própria Cassy sustente ter agido como agiu por um puro amor ao
conhecimento.”
“Ele só tem vinte e dois anos e é divinamente bonito”, disse Cassy com um
gesto exuberante.
“Proponho”, disse Helen, “que a ninguém se permita falar de castidade ou nãocastidade,
a não ser às que estão amando”.
“Nem vem”, disse Judith, que havia pesquisado sobre questões científicas,
“não estou amando e sim desejosa de explicar minhas medidas para a isenção de
prostitutas e virgens fertilizadoras por Ato do Parlamento”.
E foi em frente, falando-nos de um invento dela, para ser instalado em
estações de metrô e outros lugares públicos, o qual, com o pagamento de uma
modesta taxa, salvaguardaria a saúde da nação, atendendo a seus filhos, e
aliviando ao mesmo tempo as filhas. Além disso ela concebera um método para
preservar em tubos lacrados os embriões de futuros Presidentes da Câmara “ou
de poetas ou pintores ou músicos”, prosseguiu, “supondo-se, por assim dizer, que
essas raças não estejam extintas e que as mulheres ainda queiram ter filhos…”.
“Claro que queremos ter filhos!”, gritou Castalia impacientemente. Jane
bateu na mesa.


“Foi para discutir este ponto que nos reunimos”, disse. “Há cinco anos
tentamos descobrir se estamos justificadas em dar continuidade à raça humana.
Castalia já antecipou nossa decisão. Faltam agora as conclusões de cada uma de
nós."
Uma após outra, nossas enviadas se ergueram e apresentaram então seus
relatórios. As maravilhas da civilização excediam em muito nossas expectativas
e, ao saber pela primeira vez como o homem voa no ar, como fala através do
espaço, como penetra no interior de um átomo, como abrange o universo inteiro
em suas especulações, um murmúrio de admiração nos veio aos lábios.
“Dá-nos orgulho”, exclamamos, “que nossas mães tenham sacrificado sua
juventude por uma causa como essa!”. Castalia, que a tudo ouvia com a maior
atenção, parecia a mais orgulhosa de todas. Então Jane nos lembrou de que ainda
tínhamos muito o que aprender, e Castalia pediu que nos apressássemos. Lá
fomos pois por um vasto emaranhado de estatísticas. Soubemos que a Inglaterra
tem uma população de tantos milhões, uma ou certa proporção da qual vive
constantemente faminta e na prisão; qual o tamanho médio da família de um
trabalhador e que uma grande porcentagem de mulheres morre de doenças
decorrentes do parto. Foram lidos relatórios de visitas a fábricas, ao comércio, a
bairros pobres e às docas. Foram feitas descrições da Bolsa de Valores, de uma
gigantesca casa de negócios no centro de Londres e de uma repartição pública.
Foram também discutidas as colônias britânicas, prestando-se informações sobre
o domínio que exercemos na Índia, na África e na Irlanda. Eu, sentada ao lado
de Castalia, notei seu desassossego.


“Nunca chegaremos a uma conclusão nesse ritmo”, disse ela. “Como a
civilização se mostra muito mais complexa do que imaginávamos, não seria
melhor nos limitarmos à nossa indagação original? Concordamos que o objetivo
da vida era formar boas pessoas e produzir bons livros. Mas esse tempo todo nós
só falamos de fábricas, aeroplanos, dinheiro. Vamos falar dos próprios homens, e
de suas artes, pois este é o cerne da questão.”
Deram assim um passo à frente as que tinham jantado fora, com tiras de
papel com as respostas às perguntas feitas, formuladas depois de muitas
considerações. Um bom homem, concordáramos, ao menos deveria ser honesto,
apaixonado e desinteresseiro. Mas só fazendo perguntas, e partindo em geral de
uma distância bem remota do centro, era possível descobrir se determinado
homem possuía ou não tais virtudes. Kensington é um bom lugar para se morar?
Onde é que seu filho estuda — e sua filha? Agora me diga, por favor, quanto
custam seus charutos? Sir Joseph, por falar nisso, é baronete ou apenas cavaleiro?
Frequentemente parecia que aprendíamos mais com questões triviais desse tipo
do que com as perguntas mais diretas. “Aceitei meu pariato”, disse Lord
Bunkum, “porque minha mulher queria”. Quantos títulos foram aceitos pela
mesma razão, nem lembro mais. “Trabalhando quinze das vinte e quatro horas
do dia, como eu…”, assim começavam dez mil profissionais.


“Não, não, naturalmente o senhor não sabe ler nem escrever. Mas por que
trabalha tanto?” “Minha senhora, com a família crescendo…” “Mas por que sua
família cresce?” Suas esposas também queriam isso, ou talvez fosse o Império
Britânico. Mais significativas do que as perguntas, porém, eram as negativas a
responder. Bem poucos respondiam todas as perguntas sobre religião e
moralidade, e as respostas que eram dadas, não eram sérias. Perguntas sobre o
valor do dinheiro e do poder invariavelmente eram postas de lado, ou
contrapostas, com extremo risco, à entrevistadora. “Estou certa de que”, disseJill,
“se ele não estivesse cortando a costeleta quando eu lhe perguntei sobre o sistema
capitalista, Sir Harley Tightboots teria me cortado o pescoço. A única razão que
nos fez escapar tantas vezes vivas é que os homens são, ao mesmo tempo, tão
esfomeados e tão cavalheirescos. Eles nos desprezam demais para ligar para o
que nós dizemos”.


“Claro que nos desprezam”, disse Eleanor. “Ao mesmo tempo, fiz pesquisa
entre os artistas — como se explica isto: nunca houve uma mulher artista, não é
mesmo, Poll?”
“Jane—Austen—Charlotte—Brontë—George—Eliot”, gritou Poll, como um
ambulante apregoando quitutes numa rua dos fundos.
“Maldita mulher!”, exclamou alguém. “A mulher é uma chata.”
“Desde Safo não se tem visto uma mulher de primeira grandeza…”,
começou Eleanor, lendo nas páginas de um semanário.
“Já é agora bem sabido que Safo foi invenção algo libidinosa do professor
Hobkin”, interrompeu Ruth.


“Seja como for, não há razão para supor que alguma mulher já foi capaz ou
um dia será capaz de escrever”, continuou Eleanor. “No entanto, quando estou
entre autores, eles nunca deixam de me falar dos seus livros. Magistral! digo eu,
ou: nem o próprio Shakespeare! (pois é preciso dizer alguma coisa), e garanto
que eles acreditam em mim.”
“Mas isso não prova nada”, disse Jane. “Todos fazem o mesmo. O
problema”, suspirou, “é que isso não parece nos ajudar muito. Talvez fosse
melhor examinarmos agora a literatura moderna. Liz, é a sua vez”.
Elizabeth se levantou e disse que, para fazer sua pesquisa, teve de se vestir
de homem e passar por resenhista de livros.


“Li livros novos praticamente sem parar durante os últimos cinco anos”,
disse ela. “Wells é o mais popular dentre os autores vivos; depois vem Arnold
Bennett; depois é Compton Mackenzie; McKenna e Walpole podem ser postos
juntos.” E aí sentou-se.
“Mas você não nos disse nada”, reclamamos. “Ou estará querendo dizer
que esses senhores ultrapassaram em muito Jane—Eliot e que a ficção inglesa
está — onde está mesmo aquela sua resenha? — Ah, sim, ‘está bem entregue nas
mãos deles’”.


“Bem entregue, garantida”, disse ela, mudando intranquilamente de pé. “E
estou certa de que eles dão ainda mais do que recebem.”
Disso estávamos todas certas. “Mas eles”, pressionamo-la, “eles escrevem
bons livros?”.
“Bons livros?”, disse ela, olhando para o teto. “Vocês devem se lembrar”,
continuou, falando com extrema rapidez, “de que a ficção é o espelho da vida. E
não podem negar que a educação é da maior importância, e que seria
imensamente desagradável achar-se você sozinha em Brighton, tarde da noite,
sem saber qual a melhor pensão onde ficar e, supondo-se que fosse uma tarde
chuvosa de domingo — não seria bom ir ao cinema?”.
“Mas o que é que isto tem a ver com aquilo?”, perguntamos.
“Nada — nada — nada de nada”, respondeu ela.


“Diga-nos então a verdade”, pedimos.
“A verdade? Pois não é uma maravilha?”, ela se abriu: “Há trinta anos que
Mr. Chitter escreve um artigo semanal sobre o amor ou sobre torradas
amanteigadas quentes e com isso mandou todos os filhos para Eton…”.
“A verdade!”, exigimos.
“Oh, a verdade”, ela gaguejou, “a verdade não tem nada a ver com a
literatura”, e recusou-se, sentando-se, a dizer qualquer coisa mais.
Tudo era, a nosso ver, muito inconclusivo.
“Senhoras, temos de tentar resumir os resultados”, ia dizendo Jane, quando
um rumor, que há algum tempo já se ouvia pela janela aberta, abafou sua voz.
“Guerra! Guerra! Guerra! Declaração de guerra!”, gritavam homens na
rua embaixo.
Entreolhamo-nos horrorizadas.
“Que guerra?”, gritamos. “Que guerra?” Lembramo-nos, mas tarde
demais, de que nunca tínhamos pensado em mandar ninguém para a Câmara dos
Comuns. A respeito disso, esquecêramos tudo. Viramo-nos então para Poll, que
alcançara as prateleiras de história da Biblioteca de Londres, pedindo-lhe que nos
esclarecesse.


“Por que”, gritamos, “os homens entram em guerra?”.
“Às vezes por uma razão, às vezes por outra”, explicou ela calmamente.
“Em 1760, por exemplo… ” A berraria lá fora sobrepôs-se às suas palavras.
“Novamente em 1797 — e em 1804 — em 1866 foram os austríacos — em
1870, os franco-prussianos — em 1900, por outro lado…”
“Mas já estamos em 1914”, interrompemos.
“Ah, agora”, ela admitiu, “não sei por que é que estão em guerra não”.
* * *
A guerra tinha acabado e a paz já estava sendo assinada quando estive mais uma
vez com Castalia no quarto onde costumeiramente ocorriam nossos encontros.
Logo nos pusemos a revirar as páginas de nossos velhos cadernos de anotações.
“É gozado”, refleti, “ver o que nós pensávamos há cinco anos”. “Concordamos”,
citou Castalia, lendo por cima do meu ombro, “que o objetivo da vida é formar
boas pessoas e produzir bons livros”. Não fizemos o menor comentário a isso.
“Um bom homem deve ao menos ser honesto, apaixonado e desinteresseiro.”
“Que linguagem de mulher!”, observei. “Oh, querida”, exclamou Castalia,
afastando o livro de si, “como éramos tolas! E tudo por culpa do pai de Poll”,
continuou. “Aquilo que ele fez de propósito — aquele testamento ridículo, aquela
cláusula obrigando Poll a ler todos os livros da Biblioteca de Londres. Se não
tivéssemos aprendido a ler”, disse ela amargamente, “ainda poderíamos estar
tendo filhos na ignorância, e afinal essa seria, creio eu, a mais feliz das vidas. Sei
o que você há de dizer sobre a guerra”, examinou-me, “e o horror que é ter
filhos para os ver mortos, mas nossas mães passaram por isso, e as avós, e as
bisavós, e nenhuma reclamou. Elas não sabiam ler. Eu mesma fiz o que pude”,
suspirou, “para impedir minha filhinha de aprender a ler, mas de que adianta?
Ontem mesmo peguei Ann com um jornal na mão, e logo ela foi me
perguntando se ele dizia ‘a verdade’. Em breve me perguntará se Mr. Lloy d
George é um bom homem, depois se Mr. Arnold Bennett é um bom romancista e
finalmente se eu acredito em Deus. Como posso educar minha filha sem nada no
que acreditar?”, perguntou.


“Certamente você poderia ensiná-la a crer que o intelecto do homem é e
será sempre fundamentalmente superior ao da mulher?”, sugeri eu. Com isso ela
se animou e voltou a revirar os nossos velhos cadernos. “Sim”, disse, “pense nas
descobertas, na matemática, na ciência, na filosofia, na erudição deles…”, e aí
começou a rir, “nunca vou me esquecer do velho Hobkin e o grampo de cabelo”,
acrescentou, e continuou lendo e rindo e eu já achava que estava muito feliz
quando de repente ela jogou o livro de lado e exclamou: “Oh, Cassandra, por que
você me atormenta? Você não sabe que nossa crença no intelecto do homem é a
maior falácia de todas?”. “O quê?”, exclamei eu. “Pergunte a qualquer
jornalista, mestre-escola, político ou dono de botequim do país e todos eles lhe
dirão que os homens são muito mais inteligentes do que as mulheres.” “Como se
eu duvidasse disso”, disse com escárnio. “Como ser de outro modo? Não fomos
nós que os criamos e nutrimos e mantivemos em conforto desde o começo dos
tempos para que eles pudessem ser inteligentes, mesmo que não sejam nada
além disso? Foi feito por nós, o que aí está!”, gritou. “Quisemos tanto ter intelecto,
que agora temos de sobra. É o intelecto”, continuou, “que está na base de tudo. O
que há de mais encantador que um garoto, antes de começar a cultivar seu
intelecto? É bonito de ver; não se dá ares de importância: compreende
instintivamente o significado da arte e da literatura; anda por aí aproveitando sua
vida e fazendo com que outros aproveitem também as suas. Mas aí lhe ensinam a
cultivar seu intelecto. Ele se torna um advogado, um funcionário público, um
general, um autor, um professor. Todos os dias vai para o escritório. Todos os anos
produz um livro. Mantém toda uma família com as produções do seu cérebro —
pobre coitado! Em breve não poderá entrar num quarto sem que nos sintamos
todas incomodadas; ele se mostra condescendente com qualquer mulher que
encontra, e nem sequer à própria esposa ousa dizer a verdade; se tivermos de tomálo
nos braços, temos de fechar nossos olhos, não de alegrá-los. Na verdade eles se
consolam com estrelas em todos os formatos, com faixas de todas as cores e com
todos os montantes de renda — mas o que temos nós para nos consolar? Que
dentro de dez anos seremos capazes de passar uma semana em Lahore? Ou que o
menor inseto do Japão tem um nome que é o dobro da extensão de seu corpo?
Oh, Cassandra, pelo amor de Deus, vamos inventar um método que permita aos
homens terem filhos! É a nossa única esperança. Pois, a não ser que lhes
propiciemos uma ocupação inocente, não teremos boas pessoas, nem sequer bons
livros; pereceremos sob os frutos de sua desembestada atividade; e não
sobreviverá nem mesmo um ser humano para saber que outrora
existiu Shakespeare!”.


“Já é tarde demais”, repliquei. “Não podemos nem cuidar dos filhos que já
temos.”
“E você quer que eu acredite em intelecto?”, ela disse.
Enquanto conversávamos, homens roucos e exaustos gritavam pela rua e,
ouvindo-os, ficamos sabendo que o Tratado de Paz tinha sido assinado havia
pouco. As vozes foram sumindo ao longe. A chuva caía e por certo interferia
com a correta explosão dos fogos de artifício.
“Minha empregada já terá comprado o Evening News”, disse Castalia, “que
Ann deve estar soletrando enquanto toma seu chá. Tenho de ir para casa”.
“Não adianta — não adianta nada”, disse eu. “Depois que ela aprender a
ler, somente numa coisa você poderá ensiná-la a acreditar — nela mesma.”
“Bem, já seria uma mudança”, disse Castalia.
Passamos pois a mão nos papéis da nossa Sociedade e, embora Ann
estivesse brincando com a sua boneca na maior felicidade, solenemente a
presenteamos com o monte, dizendo-lhe que a tínhamos escolhido para ser a
Presidente da Sociedade do futuro — com o que a coitadinha caiu em prantos.


SEGUNDA OU TERÇA
Preguiçosa e indiferente, arredando espaço de suas asas com a maior facilidade,
e sabendo o caminho, a garça passa embaixo do céu por sobre a igreja. Branco e
distante, absorto em si mesmo, infinitamente o céu cobre e descobre, fica e se
afasta. Um lago? Apague logo sua margem! A montanha? Oh, é perfeita —
dourando ao sol sua encosta. Ora desce, descai. E depois samambaias, ou penas
brancas, incessantemente…
Desejando a verdade, à espera dela, destilando laboriosamente algumas
palavras, desejando sem parar — (parte um grito da esquerda, depois outro à
direita. Movem-se rodas que divergem. Ônibus se conglomeram em conflito) —
sem parar desejando — (o relógio assevera com doze badaladas distintas que é
meio-dia; escamas de ouro se desprendem da luz; crianças se embolam) —
desejando eternamente a verdade. Vermelha é a cúpula; há moedas penduradas
nas árvores; a fumaça se espicha pelas chaminés; clamam, berram, gritam
“ferro à venda” — e a verdade?


Propagando-se até um ponto nos pés de homens e mulheres, com
incrustações douradas ou negras — (Esse tempo nevoento — Açúcar? Não,
obrigado — A comunidade do futuro) —, a luz do fogo se arremessa e avermelha
toda a sala, exceto as figuras negras e seus brilhantes olhos, enquanto lá fora um
carro descarrega, Miss Thingummy toma chá à sua mesa e casacos de pele são
preservados em vidro…
Agitada, folha-luz, levada pelas esquinas, soprada por entre as rodas,
salpicada de prata, em casa ou fora de casa, juntada, espalhada, derramada em
separadas escamas, varrida para lá e para cá, dilacerada, deprimida, reunida —
e a verdade?
Agora refazer-se ao lado do fogo no quadrado branco de mármore. Vindas
de ebúrneas profundidades, palavras soltam seu negrume ao se erguer,
florescem, penetram. Caído o livro; na chama, na fumaça, nas fagulhas
momentâneas — ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, por
baixo minaretes e os mares da Índia, enquanto o espaço corre azul e as estrelas
cintilam — a verdade? ou, agora, satisfação com a reclusão?
Preguiçosa e indiferente a garça retorna; o céu cobre com véu suas estrelas;
depois desnuda-as.


O QUARTETO DE CORDAS
Bem, cá estamos, e se você correr os olhos pela sala verá que bondes, metrôs e
ônibus, não poucas carruagens particulares e até, ouso crer, landaus puxados por
cavalos baios participaram de tudo, trançando fios de uma à outra extremidade
de Londres. No entanto, começo a ter minhas dúvidas…
Se de fato for verdade, como estão dizendo, que a Regent Street está
fervilhando, que o Tratado foi assinado, que para a época do ano o tempo não
está frio, que nem por muito de aluguel se arranja apartamento e que o pior da
gripe são as consequências; se me ocorre pensar ter esquecido de escrever sobre
a goteira na despensa, e que deixei minha luva no trem; se os laços de sangue
mandam-me, a mim que me dobro à frente, aceitar cordialmente a mão que se
oferece talvez com hesitação…


“Há sete anos não nos víamos.”
“A última vez foi em Veneza.”
“E onde você está morando agora?”
“Bem, para mim é melhor no fim da tarde, se bem que, se não fosse pedir
muito…”
“Mas eu logo a reconheci.”
“É, a guerra abriu uma brecha…”


Se é a mente varada por tais insignificantes flechinhas, e se — pois que a
tanto compele a sociedade humana — assim que uma é disparada, já outra
pressiona à frente; se isso gera calor e se, em acréscimo, acenderam a luz
elétrica; se dizer uma coisa, em tantos casos, deixa por trás uma necessidade de
rever, de melhorar, revolvendo além do mais nos lamentos, prazeres, vaidades,
desejos — se são todos os fatos a que me refiro, os chapéus, os boás de pele, as
casacas dos cavalheiros e os alfinetes de gravata de pérola que vêm à superfície
— qual é a chance?


De quê? A cada minuto se torna mais difícil dizer por que, a despeito de
tudo, sento-me aqui acreditando que agora eu não posso dizer de quê, nem
mesmo me lembrar da última vez em que isso aconteceu.
“Você viu o desfile?”
“O rei parecia tão frio.”
“Não, não, não. Mas o que era mesmo, hein?”
“Ela comprou uma casa em Malmesbury.”
“Que sorte, achar uma!”


A mim, pelo contrário, parece mais que certo ela estar, seja ela quem for, é
desgraçada, já que é tudo uma questão de casotas e chapéus e gaivotas, ou assim
parece ser para a centena de pessoas bem-vestidas, emparedadas, empelicadas,
repletas que aqui tomaram assento. Não que eu possa me gabar, pois também
passivamente me sento numa poltrona dourada, e apenas reviro a terra, como
fazemos todos nós, sobre uma memória sepulta, pois há sinais, se não me engano,
de que todos estamos lembrando de uma coisa, furtivamente à procura de uma
coisa. Por que se inquietar? Por que tanta ansiedade sobre o acerto das roupas;
das luvas — desabotoá-las ou não? Observe a seguir o rosto idoso, em destaque
na tela escura, há um momento cortês e enrubescendo; agora triste e taciturno,
como que na sombra. Era o som do segundo violino a se afinar na antes-sala? Aí
vêm eles; quatro negras figuras com instrumentos, que se sentam de frente para
os quadrados brancos sob a torrente de luz; pousam as pontas de seus arcos na
estante de música; com um movimento simultâneo os levantam; bem de leve os
mantêm em suspensão e, olhando para o instrumentista à sua frente, o primeiro
violino conta um, dois, três…


Que floresça a primavera, que o broto nasça! Há uma pereira no alto da
montanha. Jorram fontes; caem gotas. O Ródano porém corre profundo e célere,
precipita-se por sob as arcadas e arrasta as folhas que boiavam sobrando,
lançando sombras nos peixes prateados, nos peixes malhados impelidos ao fundo
pelas águas velozes e ora puxados por um redemoinho para — como é difícil isto
— a conglomeração de todos num poço; peixes que saltam, que espadanam, que
afiam suas nadadeiras cortantes; e tal a agitação da corrente que os seixos
amarelos rolados vão se tornando cada vez mais redondos, roliços, rotundos —
livres agora, quando se precipitam ao fundo, ou mesmo ascendem de algum
modo no ar em espirais primorosas; que se enrolam, como aparas tiradas por
uma plaina; e não param de subir… Como é bela a bondade em quem, pisando
de leve, passa sorrindo pelo mundo! E também em velhas e animadas peixeiras
que se agacham debaixo das arcadas, pândegas e obscenas velhotas que, ao
andarem de um lado para outro, hum, ah!, riem às gargalhadas, sacudindo-se a
mais não poder.


“Isto é do jovem Mozart, naturalmente…”
“Mas a melodia, como todas as melodias dele, leva ao desespero — ou
melhor, à esperança. Que é que eu quero dizer? Que o pior da música é isto!
Quero dançar, rir, comer bolos cor-de-rosa, bolos amarelos, beber vinho suave
ou forte. Ou, agora mesmo, uma anedota indecente — bem que me agradaria.
Quanto mais velha uma pessoa fica, mais gosta de imoralidades. Ra-ra-ra! eu
estou rindo. De quê? Nem você, nem o senhor idoso do outro lado, nada
disseram… Mas suponha que — suponha — Silêncio!”


O rio da melancolia nos leva. Quando a lua penetra por entre os ramos
pendentes do salgueiro, vejo seu rosto, ouço sua voz e os passarinhos cantando ao
passarmos pelo canteiro de vime. O que dizem seus murmúrios? Aflição, aflição.
Alegria, alegria. Trançadas juntas, inextricavelmente mescladas, ligadas pela dor
e juncadas de sofrimento — até se romper!
O barco afunda. Soerguendo-se, as figuras ascendem, mas finas como
folhas agora, e gradualmente se reduzem a um nevoento espectro que, com as
extremidades em fogo, arranca-me do coração sua paixão dobrada. Para mim
ele canta, deslacra minha dor, induz à compaixão, inunda de amor o mundo sem
sol, não reprime, cessando, sua ternura, mas ágil e sutilmente tece para dentro e
para fora, até que neste padrão, nesta consumação, venha unificar as fendas;
voar, soluçar, afundar em repouso, aflição e alegria.


Então, por que se atormentar? Pedir o quê? Continuar insatisfeita? Digo que
tudo está resolvido; sim; posto para descansar debaixo de uma colcha de folhas
de roseira caindo. Caindo. Ah, mas elas param. Uma folha de roseira, caindo de
enorme altura, como um pequeno paraquedas lançado de um balão invisível, virase,
adeja indecisamente. Não conseguirá alcançar-nos.


“Não, não. Não notei nada. O pior da música é isto — estes sonhos absurdos.
O segundo violino se atrasou, é?”
“É a velha Mrs. Munro, sentindo que está no fim — cada ano mais cega,
coitada — neste piso escorregadio.”
Velhice sem olhos, esfinge de cabeça grisalha… Lá está ela na calçada,
fazendo sinal, na maior austeridade, para o ônibus vermelho.
“Como foi bom! Como eles tocam bem! Como — como — como!”
A língua não passa de uma matraca. A própria simplicidade. As penas do
chapéu a meu lado são reluzentes e deleitam como um matraquear de crianças.
A folha do plátano cintila em verde pela fresta da cortina. Muito estranho, muito
emocionante.


“Como — como — como!” Chega!
Estes aqui são os namorados na grama.
“Se aceitar minha mão, madame…”
“Bem que eu lhe confiaria, senhor, meu coração. Mas acontece que
deixamos nossos corpos no salão de banquete. São as sombras de nossas almas
que se estendem na grama.”
“São nossas almas então que assim se acariciam.” Os limoeiros acenam em
concordância. O cisne se desloca da margem e, sonhador, vai nadando para o
meio da água.


“Mas, para voltar. Ele me seguiu pelo corredor abaixo e, quando dobramos
a esquina, pisou nas rendas da minha anágua. O que eu podia fazer senão gritar
‘Ah!’ e parar para ajeitá-las? Nisso ele desembainhou sua espada, deu alguns
golpes como se a fosse cravar para matar e gritou: ‘Louca! Louca! Louca!’.
Tendo eu aí dado um berro, o Príncipe, que estava escrevendo no grande livro
em velino à janela em sacada, saiu com seu gorro de veludo e seus chinelos
forrados para arrancar da parede uma espada de dois gumes — presente do rei
da Espanha, sabe — e foi nessa que escapei, me enrolando bem na capa para
esconder os estragos na minha saia — para esconder… Mas ouça! as trompas!”
O cavalheiro responde com tal rapidez à dama, e ela sobe na escala com
tão espirituosa troca de atenções, a culminar agora num apaixonado soluço, que
as palavras são indistinguíveis, embora seu significado seja bastante claro —
amor, riso, arroubo, perseguição, ventura celestial — tudo flutuando às claras no
mais alegre encrespar-se de carinhosa estima — até que o som das trompas
prateadas, a princípio muito distante, pouco a pouco adquire cada vez mais
clareza, como se houvesse senescais saudando a aurora ou proclamando
ominosamente a escapada dos amantes… O jardim verde, poça enluarada, os
limoeiros, os namorados e os peixes estão todos dissolvidos no céu de opala, pelo
qual, quando as trompas se juntam a trompetes e são acompanhadas por clarins,
sobem arcadas brancas apoiadas firmemente em pilares de mármore…
Caminhar e clarinar. Clangorar e clangor. Firme estabelecimento. Fixas
fundações. Marcha de miríades. Confusão e caos postos por terra. A cidade para
a qual viajamos não tem pedra nem mármore; mas paira duradoura; permanece
inabalável; nenhum rosto, nenhuma bandeira para saudar ou dar as boas-vindas.
Deixe então perecer sua esperança; e minha alegria esmorecer no deserto;
avance nua. Há nudez nos pilares; jamais auspiciosos; jamais lançando sombras;
resplandecentes; severos. Caio pois de regresso, não mais ansiosa, desejando
apenas ir, achar a rua, marcar bem os prédios, cumprimentar a vendedora de
maçãs, dizer para a empregada que vem abrir a porta: Uma noite estrelada.
“Boa noite, boa noite. Você vai para lá?”
“Ah, não! Vou para cá.”


AZULE VERDE
VERDE

Os dedos de vidro pendurados apontam para baixo. A luz, ao deslizar pelo vidro,
derrama uma poça verde. O dia inteiro os dez dedos do lustre derramam verde
no mármore. As penas dos periquitos — seus gritos dissonantes — cortantes
lâminas de palmeiras — verdes também; verdes agulhas reluzindo no sol. Mas
não para o duro vidro de gotejar sobre o mármore; sobre a areia do deserto as
poças ficam suspensas; por elas cambaleiam camelos; as poças se assentam no
mármore; juncos as margeiam; e ervas se grudam nelas; aqui e ali uma flor
branca; o sapo salta por cima; de noite as estrelas são afixadas intactas. Aproximase
a noite, e o verde, varrido pela sombra, vai para cima da lareira; a superfície
enrugada do oceano. Não há navios chegando; as ondas a esmo balançam sob o
céu vazio. A noite avança; das agulhas agora pingam traços de azul. O verde ficou
de fora.


AZUL
O monstro de nariz achatado surge na superfície e esguicha por suas rudes
narinas duas colunas de água que, de um branco ardente no centro, ao redor se
espalham numa orla de borrifos azuis. A tela preta do seu couro é riscada por
pinceladas azuis. Enchendo-se de água pela boca e as narinas, pesado de tanta
água ele afunda, e o azul se fecha sobre ele, a procurar por artes mágicas os
seixos polidos dos seus olhos. Lançado à praia ei-lo que jaz, rude, obtuso, soltando
escamas secas e azuis. O azul metálico delas mancha na praia o ferro
enferrujado. São azuis as nervuras do barco a remo que afundou. Sob os sinos
azuis rola uma onda. Mas é diferente o da catedral, frio, cheio de incenso, um
azul desmaiado, com véus de madonas.

UMA ESCOLA DE MULHERES VISTA DE FORA
A lua, com seu branco plumoso, nunca deixava o céu ficar escuro; a noite inteira
eram brancas contra o verde as flores do castanheiro, como indistinta pelos
prados era a salsa-do-campo. Nem à Tartária nem à Arábia ia o vento dos pátios
de Cambridge, mas mergulhava sonhador em meio a nuvens cinza-azuladas
sobre os telhados de Newnham. Lá no jardim, se precisasse de espaço para
andar, ela o encontraria entre as árvores; e, como apenas faces de mulheres
poderiam encontrar sua face, tirando o véu ela seria capaz de a revelar apática,
inexpressiva, e fixar o olhar nos quartos onde, àquela hora, apáticas,
inexpressivas, pálpebras brancas sobre os olhos, mãos sem anéis sobre lençóis,
dormiam numerosas mulheres. Mas aqui e ali ainda havia uma luz acesa.
No quarto de Angela, poder-se-ia imaginar uma luz dupla, tendo em vista
quão luminosos eram não só a própria Angela, mas também seu reflexo que o
espelho quadrado devolvia. Toda ela perfeitamente delineada – até a alma talvez.
Pois o espelho apresentava uma imagem que era incapaz de tremer – branca e
dourada, chinelos vermelhos, cabelo claro com pedrinhas azuis, e nunca uma
ruga ou sombra para interromper o prolongado beijo de Angela e seu reflexo no
espelho, como se ela estivesse radiosa de ser Angela. Radioso, fosse como fosse,
era o momento – o quadro reluzente pendurado no coração da noite, o santuário
escavado nas trevas. É estranho de fato ter essa prova visível da retidão das
coisas; esse lírio a flutuar impecável, e sem medo, sobre as águas do Tempo,
como se isto bastasse – este reflexo. Meditação que ela traiu ao virar-se, e o
espelho já não exibia mais nada, ou somente a armação da cama, e ela,
correndo de lá para cá, pisando de leve e disparando, tornou-se igual a uma
mulher numa casa e mudou de novo: franziu os lábios por cima de um livro preto
e com seu dedo marcou o que não seria decerto uma apreensão muito firme da
ciência econômica. Somente Angela Williams estava em Newnham com o
objetivo de ganhar a vida, não podendo se esquecer, nem mesmo em momentos
de adoração apaixonada, dos cheques de seu pai em Swansea; de sua mãe
lavando roupa no tanque: vestidos cor-de-rosa para estender no varal; sinais de
que nem o lírio ainda flutua impecável sobre as águas, tendo sim, como qualquer
um, um nome escrito num cartão.


A. Williams – pode-se ler à luz da lua; e a seguir alguma Eleanor ou Mary,
Mildred, Sarah, Phoebe em cartões quadrados nas suas portas. Nada a não ser
nomes, apenas nomes. A luz branca e fria os embranquecia e engomava até
restar a impressão de que o único objetivo desses nomes todos era se pôr
marcialmente em ordem caso houvesse um chamamento a que fossem apagar
um incêndio, abafar uma insurreição ou submeter-se a um exame. Tal é o poder
dos nomes escritos em cartões afixados nas portas. Tal também a semelhança,
vejam-se as telhas, corredores, portas de quartos de dormir, com um convento
ou um estábulo, um lugar de reclusão ou disciplina, onde a vasilha de leite se
mantém fresca e pura e há muita lavação de roupa.
Neste exato momento partiu de trás de uma porta uma risadaria abafada.
Um relógio de voz alambicada batia as horas – uma, duas. Mas, se o relógio
estivesse dando ordens, essas eram desobedecidas. Incêndio, insurreição, exame,
tudo se cobria de neve com as risadas, ou com jeito era extinto, dando o som a
impressão de borbulhar das profundas para meigamente afastar, de um sopro,
hora, regras, disciplina. A cama estava cheia de cartas de baralho espalhadas.
Sally, no chão. Helena, na cadeira. Bertha, perto da lareira, esquentava as mãos
juntas. A. Williams entrou bocejando.


“Porque é profunda e intoleravelmente irritante”, disse Helena.
“Irritante”, ecoou Bertha. E depois bocejou.
“Não somos eunucos.”
“Eu vi quando ela ia escapulindo pelo portão dos fundos, com aquele chapéu
velho. Eles não querem que a gente saiba.”
“Eles?”, disse Angela. “Ela.”
Daí as risadas.


As cartas foram dadas, com suas faces vermelhas e amarelas a cair sobre a
mesa, e às cartas se atiraram as mãos. Bertha, encostando a cabeça na cadeira,
suspirou fundo. Bem que ela teria preferido dormir, mas, já que a noite é um
pasto livre, um campo ilimitado, já que a noite é riqueza por moldar, convém
abrir na sua escuridão um túnel. Convém cobri-la de joias. A noite era partilhada
em segredo, de dia o rebanho todo pastava. A cortina estava aberta. Neblinava no
jardim. Sentando-se no chão à janela (enquanto as outras jogavam), corpo,
mente, os dois juntos pareciam levados pelo ar para arrastar-se através do
arvoredo. Ah, mas ela queria era esticar-se na cama e dormir! Ninguém sentia
como ela, acreditava, um tal desejo de sono; acreditava, humilde – e
sonolentamente –, cabeceando e já quase arriando às vezes, que as outras
estavam plenamente acordadas. Quando riram todas juntas, um passarinho que
dormia pipilou no jardim, como se a risadaria…


Sim, como se a risadaria (pois ela agora cochilava) flutuasse também como
a neblina e se amarrasse com tiras de suave elasticidade nos arbustos e nas
plantas, tornando vaporoso e anuviado o jardim. A seguir, levados pelo vento,
curvar-se-iam os arbustos, sendo o vapor branco soprado pelo mundo afora.
De todos os quartos onde as mulheres dormiam esse vapor emanava,
aderindo como neblina às plantas para depois soltar-se livremente no ar.
Dormiam mulheres velhas que de imediato empunhariam o bastão de marfim da
ordem, se acordassem. Agora, no entanto, tão sem cor e serenas, em repouso
profundo, elas jaziam rodeadas, jaziam sustentadas pelos corpos das jovens que
ali se recostavam ou iam se agrupar à janela; derramando no jardim suas
borbulhantes risadas, sua risadaria irresponsável: um riso de corpo e alma, que
punha regras, horas, disciplina a voar para longe: imensamente fertilizador,
contudo informe, caótico, arrastando-se erradio e recobrindo de tufos e nesgas de
vapor as roseiras.


“Ah”, suspirou Angela, plantada de camisola à janela. Havia dor em sua
voz, com a cabeça curvada para fora. A neblina se fendeu como se sua voz a
partisse. Enquanto as outras jogavam, ela estivera conversando com Alice Avery
sobre o castelo de Bamborough; a cor da areia ao crepúsculo; ao que Alice
dissera que ia escrever e anotar o dia, em agosto, e inclinando-se lhe deu um
beijo, ou pelo menos tocou sua cabeça com a mão, e Angela, positivamente
incapaz de sentar-se quieta, como se um mar encapelado batesse em seu
coração, vagou de um lado para outro no quarto (a testemunha de tal cena),
mantendo os braços bem abertos para aliviar a emoção, esse espanto ante o
incrível abaixamento da árvore milagrosa coroada por um fruto de ouro – que
não veio cair em suas mãos? Ela o abrigava junto ao seio, brilhando, coisa para
não ser tocada, nem pensada ou comentada, mas para ficar lá em seu brilho. E
então, lentamente pondo aqui suas meias, ali seus chinelos, dobrando por cima,
com cuidado, a anágua, Angela, cujo sobrenome era Williams, deu-se conta de
que – como poderia expressá-lo? – de que após a negra turbulência de uma
infinidade de épocas aqui estava a luz no fim do túnel; a vida; o mundo. Embaixo
dela – tudo ótimo; tudo adorável. Tal foi sua descoberta.


Como então sentir surpresa, com efeito, se, deitada na cama, ela não
conseguia fechar os olhos de vez? – algo voltava irresistivelmente a abri-los – se
na escuridão pouco profunda o gaveteiro e a cadeira pareciam tão majestosos, e
tão precioso o espelho, quando cinéreo anunciava o dia? Chupando o polegar feito
criança (com dezenove anos feitos em novembro passado), lá ficou ela pois
nesse mundo bom, nesse mundo novo, nesse mundo no fim do túnel, até que um
desejo de o ver ou de a ele antecipar-se a impeliu a jogar de lado as cobertas
para se guiar à janela e lá, ao olhar para o jardim, onde se espalhava a neblina,
todas as janelas abertas, com um azul afogueado, com algo murmurando ao
longe, o mundo, é claro, e a manhã chegando, “Oh”, gritou ela, como se sentisse
uma dor.


NO POMAR
Miranda dormia no pomar, deitada numa espreguiçadeira sob o pé de maçã. Seu
livro tinha caído na grama e seu dedo ainda parecia apontar para a frase “Ce
pays est vraiment un des coins du monde où le rire des filles éclate le mieux…”,
como se justamente aí ela houvesse começado a dormir. As opalas em seu dedo
cambiavam de cor ao faiscar, ora em verde, ora em rosa, ora ainda em laranja,
à medida que o sol vinha cobri-las, filtrado pelas macieiras. Depois, quando a
brisa soprou, como uma flor presa na haste seu vestido roxo ondulou; dobrou-se a
grama; e a borboleta branca, bem por cima do seu rosto, veio esvoaçando a
esmo. No ar, a mais de um metro sobre sua cabeça, as maçãs pendiam. De
repente houve um barulho estridente, como se gongos de metal rachado fossem
percutidos de um modo irregular, brutal, violento. Eram contudo apenas as
crianças da escola recitando a tabuada em uníssono, interrompidas pelo
professor, repreendidas, e começando a dizer a tabuada outra vez. Mas o alarido
passou a mais de um metro sobre a cabeça de Miranda, enfiou-se nos galhos das
macieiras e, ao ir de encontro ao filho do vaqueiro, que estava apanhando
amoras na cerca, quando deveria estar na escola, levou-o a rasgar seu polegar no
espinhal.


A seguir houve um grito solitário – triste, humano, brutal. O velho Parsley,
que estava, de fato, torto de bêbado.
Aí as folhas mais do alto da macieira, planas como peixinhos contra o azul,
a mais de três metros sobre a terra, vibraram com uma nota pensativa e lúgubre.
Era o órgão da igreja que tocava um dos “Hinos antigos e modernos”. O som
saía flutuando e era cortado em átomos por um bando de tordos que voava a
enorme velocidade – fosse para onde fosse. Lá embaixo, a mais de três metros,
Miranda continuava dormindo.


E aí acima de macieira e pereira, seiscentos metros acima de Miranda a
dormitar no pomar, tocaram sinos, surdos, intermitentes, soturnos, didáticos, pois
seis pobres mulheres da paróquia eram levadas nesse instante à igreja, dando o
pastor graças a Deus por seus dízimos.
E acima disso, com um brusco rangido, a seta dourada da torre da igreja
virou de Sul para Leste. O vento tinha mudado. Acima de tudo mais ele zunia,
acima das matas, dos pastos, dos morros, quilômetros acima de Miranda que no
pomar dormia. Varreu persistente, sem olhos, sem cérebro, nada encontrando
para lhe opor resistência, até fazer meia-volta e rumar ao Sul novamente.
Quilômetros abaixo, num espaço tão grande quanto um buraco de agulha,
Miranda se pôs em pé e gritou: “Oh, vou me atrasar para o chá!”.


Miranda dormia no pomar – ou talvez não dormisse, porque seus lábios se
moviam muito de leve, como se estivessem dizendo “Ce pays est vraiment un des
coins du monde… où le rire des filles… éclate… éclate… éclate…”, e ela sorria e
deixava o corpo afundar com todo o peso na terra enorme que se ergue, pensou
então, para me levar nas costas como se eu fosse uma folha, ou uma rainha (e
aqui as crianças diziam a tabuada), ou, prosseguiu Miranda, eu poderia estar
deitada no topo de um penhasco com os gritos das gaivotas por cima. Quanto
mais alto elas voam, ocorreu-lhe a seguir, quando o professor ralhou com as
crianças e bateu nos nós dos dedos de Jimmy até fazê-los sangrar, mais fundo
olham para o mar – para o mar, repetiu, e seus dedos relaxaram e seus lábios se
fecharam serenamente, como se ela estivesse flutuando nas ondas, e depois,
quando acima da cabeça soou o berro do bêbado, ela respirou num êxtase
extraordinário, pois pensou ter ouvido os próprios gritos da vida vindos de uma
boca escarlate com sua língua grosseira, do vento, dos sinos, das folhas verdes e
curvas dos repolhos.


Naturalmente ela estava se casando quando o órgão atacou a melodia dos
“Hinos Antigos e Modernos” e, quando os sinos tocaram depois que as seis pobres
mulheres foram levadas à igreja, a intermitência surda e soturna a fez pensar
que a própria terra tremia sob os cascos do cavalo que galopava na sua direção
(“Ah”, suspirou, “eu só tenho de esperar!”), parecendo-lhe então que para ela e
ao redor, até vará-la ao través, tudo havia começado a se mover e gritar, a voar
e cavalgar, numa disposição em conjunto.


Mary está rachando lenha, pensou; Pearman está cuidando das vacas; as
carroças estão vindo dos pastos; o cavaleiro – e ela traçou as linhas que os
homens, as carroças, os pássaros e o cavaleiro faziam por essa parte do campo
até parecer que eram repelidos todos, ao redor e ao través, pelo pulsar do seu
próprio coração.


No ar, quilômetros acima, mudou o vento; a seta dourada da torre da igreja
rangeu; e Miranda pulou em pé e gritou: “Oh, vou me atrasar para o chá!”.
Miranda dormia no pomar, ou estava ou não estava dormindo? Seu vestido roxo
se esticava entre os dois pés de maçã. Havia vinte e quatro macieiras no pomar,
umas ligeiramente inclinadas, outras crescendo retas numa investida que ia
tronco acima para alargar-se em galhos e formar gotas redondas, vermelhas ou
amarelas. Cada macieira tinha bastante espaço. O céu se encaixava à perfeição
nas folhas. Quando a brisa soprou, a linha dos ramos contra o muro inclinou-se
um pouco, voltando logo depois ao normal. Uma rabirruiva voou em diagonal de
um canto a outro. Em pulinhos cautelosos, um tordo se aproximou de uma maçã
caída; e um pardal passou rente à grama, vindo do outro muro. A investida das
árvores, para o alto, era amarrada, em baixo, por esses movimentos; sendo o
todo compactado pelos muros do pomar. A terra, por quilômetros adentro, toda
presa e apertada; e na superfície enrugada pelo ar tremulante; além, na
extremidade do pomar, uma faixa roxa cortava o verde-azul. Mudando o vento,
uma penca de maçãs foi atirada tão alto que eclipsou duas vacas no pasto (“Oh,
vou me atrasar para o chá!” gritou Miranda), mas as maçãs logo voltaram a
dependurar-se no muro.


O VESTIDO NOVO
Mabel teve sua primeira grave suspeita de que alguma coisa estava errada
quando tirou a capa e Mrs. Barnet, enquanto lhe passava o espelho, apanhava as
escovas e assim chamava sua atenção, de modo um pouco exagerado talvez,
para todos os utensílios de arrumar e melhorar o cabelo, a pele, as roupas, que
havia no toucador, confirmou a suspeita – de que não estava bom, não muito
bom, a qual, tornando-se mais forte quando ela subiu pela escada e assomandolhe
como convicção quando cumprimentou Clarissa Dalloway, a fez ir
diretamente até o fundo da sala, a um canto sombreado onde havia um espelho
de parede, e olhar. Não! Não estava nada bom. E de imediato a angústia que
sempre ela tentava esconder, a profunda insatisfação – a impressão que tinha,
desde criança, de ser inferior às outras pessoas – dominou-a impiedosa e
implacavelmente, com uma intensidade que ela não podia afastar, como o faria,
quando acordava à noite em casa, lendo Borrow ou Scott; porque esses homens,
oh, e essas mulheres, oh, estavam todos pensando – “O que Mabel resolveu usar?
Ficou que nem um espantalho! Que vestido novo horroroso!” – com aquelas
pálpebras tremelicantes que se apertavam depois para fechar-se, quando
avançavam para ela. Era sua própria e estarrecedora inadaptação; sua covardia;
seu reles sangue borrifado de água que a deprimiam. E de imediato todo o quarto
onde, por tantas, tantas horas, ela planejara com a costureirinha como deveria
ficar, pareceu sórdido, repulsivo; e sua própria sala de visitas, tão bolorenta, e ela
mesma, saindo, inchou de vaidade ao tocar nas cartas sobre a mesa da entrada e
disse: “Que chato!” para se mostrar – tudo isso agora parecia indizivelmente tolo,
provinciano e desprezível. Tudo isso se tornou evidente, acabado, consumado, no
momento em que ela entrou na sala de visitas de Mrs. Dalloway.


Naquela tarde, quando, sentada à mesa do chá, recebera o convite de Mrs.
Dalloway, a ideia que lhe tinha ocorrido foi que, naturalmente, ela não podia
estar na moda. Ter uma tal pretensão era até mesmo absurdo – moda era corte,
era elegância, era um gasto de pelo menos trinta guinéus – mas por que não ser
original? Por que não ser ela mesma, fosse lá como fosse? E, levantando-se, ela
apanhara o velho figurino de sua mãe, um figurino parisiense da época do
Império, e, pensando como elas eram mais bonitas então, mais dignas e
femininas, resolvera – oh, mas que bobagem – tentar ser daquele jeito, gabandose
de fato de ser modesta e antiquada, mas muito charmosa, dando-se, sem
dúvida alguma, a uma orgia de amor-próprio que merecia ser castigada, e assim
se enfarpelara toda.


Mas não ousou se olhar no espelho. Não conseguia encarar tanto horror – o
vestido amarelo-claro de seda, insensatamente em desuso, com a saia comprida
e as mangas altas e a cintura e tudo o mais que parecia tão lindo no figurino, mas
não enfiado nela, não no meio de tanta gente tão comum. Sentia-se ali em pé
como um manequim de modista no qual pessoas jovens poderiam espetar
alfinetes.


“Mas está uma beleza, querida!”, disse Rose Shaw, olhando-a de alto a
baixo, como ela já esperava, com um leve e sarcástico franzir dos beiços – uma
vez que a própria Rose sempre se vestia pela última moda, exatamente, de resto,
como todo mundo.


Somos todas como moscas tentando se arrastar pela beirada do pires,
pensou Mabel, e repetiu a frase como se estivesse fazendo o sinal da cruz, como
se procurasse alguma fórmula mágica para anular essa dor, para tornar
suportável a agonia. Citações de Shakespeare, linhas de livros que lera tempos
atrás vinham-lhe bruscamente quando, ao se achar numa dessas agonias, punhase
sem parar a repeti-las. “Moscas tentando se arrastar”, disse de novo. Se ela o
dissesse tantas vezes até por fim levar-se a ver as moscas, tornar-se-ia
indiferente e gélida, entorpecida e muda. Agora de fato já podia ver moscas que
lentamente se arrastavam para fora de um pires de leite com as asas muito
grudadas; e ela se esforçava ao máximo (em pé diante do espelho, dando
atenção a Rose Shaw) para levar-se a ver Rose Shaw e as outras pessoas ali
como moscas, tentando içar-se para fora ou então lançar-se dentro de uma coisa
qualquer, pobres, insignificantes, laboriosas moscas. Não conseguia porém vê-las
assim, as demais pessoas. Era a si mesma que assim via – e, sendo ela mosca, os
outros eram borboletas, libélulas, belos insetos adejando, deslizando, dançando,
enquanto apenas ela se arrastava para fora do pires. (A inveja e o despeito, os
mais detestáveis dos vícios, eram seus maiores defeitos.)


“Sinto-me como uma mosca velha e decrépita, suja, terrivelmente
asquerosa”, disse ela, fazendo com que Robert Hay don parasse só para ouvi-la
dizer isso, só para reanimar a si mesma ao polir uma pobre frase irresoluta e
assim mostrar-se tão desprendida, tão espirituosa, que em absoluto não se sentia
fora de nada. E Robert Hay don, claro está, respondeu algo bem cortês, bem
insincero, que instantaneamente ela viu não ser aquilo, e disse com seus botões
(citando de novo um livro), assim que ele se afastou: “Mentiras, mentiras,
mentiras!”. Pois que uma festa torna as coisas, pensou, ou muito mais ou muito
menos reais; ela viu, num relance, o que estava no fundo do coração de Robert;
via tudo o que havia por trás. Via a verdade. A verdade era isto, esta sala de
visitas, esta pessoa, sendo a outra falsa. Era de fato terrivelmente abafado,
quente, sórdido, o quartinho de trabalho de Miss Milan. Cheirava a roupas e a
repolho cozido; no entanto, quando Miss Milan lhe deu o espelho na mão e ela se
olhou com o vestido acabado, uma extraordinária alegria se manifestou em seu
íntimo. Banhada em luz ela tomou existência. Livre de preocupações e rugas, ali
se achava tal qual se havia sonhado – uma bela mulher. Apenas por um segundo
(não ousou olhar por mais tempo e Miss Milan quis saber sobre o comprimento
da saia), uma garota encantadora, de misterioso sorriso, de cabelos nevados, o
cerne de si mesma, a alma de sua própria pessoa, emoldurada nos arabescos de
mogno, deu-lhe de lá uma olhada; e não foi só a vaidade nem foi somente o amorpróprio
que a fizeram achar aquilo bom, terno e verdadeiro. Miss Milan disse que
a saia não ficaria bem mais comprida; de todo modo a saia, disse Miss Milan,
franzindo a testa, examinando-a com todo seu bom senso e atenção, deveria ser
mais curta; e ela, súbita e sinceramente, sentiu-se cheia de amor por Miss Milan,
gostando mais, muito mais de Miss Milan que de qualquer outra pessoa no mundo,
e poderia ter clamado por compaixão ao vê-la rastejando no assoalho com a boca
cheia de alfinetes, o rosto vermelho, os olhos saltados – porter um ser humano de
fazer isso por outro, quando a todos ela via meramente como seres humanos, e ela
saindo dali para sua festa, e Miss Milan pondo a capa na gaiola do canário, ou
deixando-o pegar de entre seus lábios uma semente de cânhamo, e a ideia disso,
desse lado da natureza humana e sua paciência e resignação, seu contentamento
com prazeres tão ínfimos, minguados, reles, sórdidos, lhe encheu os olhos de
lágrimas.


E agora tudo tinha sumido. O vestido, o quarto, o amor, a compaixão, o
espelho cheio de arabescos, a gaiola do canário – tudo tinha sumido e eis que ali
se achava ela, num canto da sala de visitas de Mrs. Dalloway, submetida a
torturas e desperta, plenamente desperta para a realidade.


Mas quão indigno aquilo, quanta futilidade e fraqueza preocupar-se tanto
assim, na idade dela, com dois filhos, depender tão profundamente da opinião
alheia e não ter convicções nem princípios, não ser capaz de dizer, como outras
pessoas faziam: “Há Shakespeare! E a morte! Nenhum de nós é mais que mofo
em pão guardado” – ou fosse lá o que fosse que as pessoas diziam.


Ela então se encarou no espelho, sem mais rodeios; ela deu uma ajeitada
em seu ombro esquerdo; e dali ela saiu pela sala como se lanças estivessem
sendo atiradas, de todos os lados, em seu vestido amarelo. Porém, em vez de se
mostrar impetuosa ou trágica, como faria Rose Shaw – Rose assumiria a
aparência de uma Boadiceia –, mostrou-se acanhada e tola, sorriu sem graça
como uma menina de escola e com ar desleixado e expressamente furtivo
atravessou a sala, como se fosse um vira-lata chutado, para ir olhar um quadro,
uma gravura. Como se alguém fosse a uma festa para olhar para um quadro!
Todos sabiam por que tinha feito aquilo – foi por vergonha, por humilhação.
“A mosca agora está no pires”, disse ela consigo mesma, “bem no meio, e
não consegue sair e o leite”, pensou, olhando rigidamente para o quadro, “deixou
suas asas grudadas”.


“É tão antiquado”, disse ela a Charles Butt, fazendo-o parar (o que aliás ele
odiava) quando ia falar com outra pessoa.


Queria dizer, ou tentava se convencer de que queria dizer, que era o quadro
e não seu próprio vestido que estava fora de moda. Uma palavra de elogio, uma
palavra de afeição partida de Charles faria enorme diferença para ela na hora.
Se ao menos ele tivesse dito “Como você está charmosa hoje, Mabel”, tal frase
poderia modificar sua vida. Mas então ela deveria ter sido bem direta e sincera.
Charles, é claro, não disse nada nessa linha. Ele era a própria malícia. Via por
trás de qualquer um, sobretudo quando a pessoa se sentia particularmente fraca,
apatetada, insignificante.


“Mabel está de vestido novo!”, disse ele, e a pobre mosca foi de uma vez
por todas empurrada para o meio do pires. Bem que ele gostaria, acreditou ela,
que logo o inseto se afogasse. Não tinha coração, não era fundamentalmente
bom, tinha tão só um verniz de amistosidade. Muito mais real e bondosa era Miss
Milan. Se ao menos fosse possível sentir assim e ater-se sempre a isso! “Por
que”, ela se perguntou – respondendo com excesso de atrevimento a Charles,
deixando-o ver que estava descontrolada, ou “encrespada”, como ele mesmo
afirmou (“Um tanto encrespada?”, disse ele e foi em frente, para rir dela com
outra mulher adiante) – “por que”, ela se perguntou, “não consigo sentir sempre
a mesma coisa, ter certeza absoluta de que Miss Milan está certa, Charles,
errado, e apegar-me a isso, ter certeza quanto ao canário, a compaixão, o amor,
e não ficar levando lambadas que vêm de todos os lados, assim que entro numa
sala cheia de gente?”. Era de novo seu caráter fraco, vacilante, odioso, sempre
dando no momento crítico e não se interessando seriamente por concologia,
etimologia, botânica, arqueologia, nem por cortar batatas em pedaços e vê-las
frutificando, como Mary Dennis, como Violet Searle.


Foi então que Mrs. Holman, vendo-a ali em pé, abriu caminho até ela para
importuná-la. Claro que algo como um vestido se punha abaixo da capacidade de
observação de Mrs. Holman, cuja família estava sempre descendo aos
trambolhões pela escada ou pegando escarlatina. Saberia Mabel dizer-lhe se
Elmthorpe já tinha sido alugado para agosto e setembro? Oh, era uma conversa
que a aborrecia além da conta! – e ela ficou furiosa por ser tratada como um
corretor de imóveis ou um mensageiro, por ser usada assim. Não ter valor, era
isso, pensou, tentando apegar-se a alguma coisa real, alguma coisa sólida,
enquanto se esforçava para dar respostas sensatas sobre o banheiro e a vista para
o Sul e a água quente na parte alta da casa; e o tempo todo ela podia ver
pedacinhos de seu vestido amarelo no espelho redondo que reduzia ao tamanho
de botões de bota ou girinos os que ali se encontravam; era espantoso pensar o
quanto de humilhação e agonia e aversão por si e esforço e apaixonados altos e
baixos sentimentais se continham numa coisa do tamanho de uma moedinha
irrisória. E o que era ainda mais esquisito é que essa coisa, essa Mabel Waring,
estava à parte, desconectada de todo; e, apesar de Mrs. Holman (o botão preto)
se inclinar para a frente e lhe contar que seu menino mais velho tinha forçado
demais o coração correndo, ela também podia vê-la, no espelho, bem separada,
e ao ponto preto, inclinado para a frente, gesticulando, era impossível fazer o
ponto amarelo, sentado solitário, autocentrado, sentir o que ele próprio sentia,
embora os dois fingissem isso.


“É impossível manter garotos quietos” – eis o tipo de coisa que era dito.
E Mrs. Holman, que nunca conseguia despertar muita simpatia e se
agarrava com avidez ao pouco mesmo que houvesse, como se fosse seu direito
(mas ela merecia muito mais, pois ainda havia sua garotinha que tinha aparecido
com um inchaço no joelho hoje cedo), aceitou a mísera oferta e a examinou
suspeitosa, relutante, como se fosse meio pêni, quando deveria ser uma libra,
para guardá-la então na bolsa, tendo de conformar-se com ela, mesmo mísera e
reles como era, por ser difícil, tão difícil, a época; e Mrs. Holman, prejudicada e
chiando, não parava de falar da garota que tinha as juntas inchadas. Ah, que
trágica essa ganância, esse clamor de seres humanos que, como um bando de
cormorões, batem asas e berram a pedir simpatia – era trágica, caso se pudesse
realmente sentir, e não apenas fingir que se sentia tal coisa!


Mas essa noite ela não podia espremer nem uma gota de seu vestido
amarelo; queria tudo, tudo para si. Sabia (continuando a olhar no espelho,
mergulhava na poça azul de exibições enfadonhas) que estava condenada, que a
desprezavam, que fora deixada assim num remanso por ser assim como era,
uma criatura vacilante e frágil; e tinha a impressão de que o vestido amarelo era
uma penitência merecida e que, se estivesse vestida como Rose Shaw, num belo
verde colante com uma pala de algodão pregueada, teria merecido isso também;
e pensou não ter saída – nenhuma saída mesmo. Mas não era de todo culpa dela,
afinal de contas. Era por ser mais uma de uma família de dez; porque o dinheiro,
sempre escasso, raspado, nunca foi suficiente; e sua mãe a carregar grandes
latas e nas quinas da escada o linóleo gasto e pequenas e sórdidas tragédias
domésticas em sucessão contínua – nada de catastrófico, a fazenda de criação de
carneiros fracassando, mas não completamente; seu irmão mais velho se
casando abaixo, mas não tão abaixo assim, de seu próprio nível – não havia
romantismo, nada de excessivo, em relação a eles. Respeitavelmente iam todos à
exaustão nas praias; cada balneário tinha ainda agora uma de suas tias dormindo
numa pensão qualquer onde as janelas da frente não davam bem para o mar.
Isso aliás combinava muito com eles – que sempre tinham de olhar as coisas de
esguelha. E ela fizera o mesmo – era tal e qual suas tias. Pois todos os seus sonhos
de viver na Índia, casada com algum herói como Sir Henry Lawrence, com
algum construtor de império (a visão de um nativo de turbante a enchia de
romantismo ainda), tinham dado em nada. Ela se casara com Hubert, com seu
emprego de subalterno, seguro e permanente, no Tribunal de Justiça, e eles se
arranjavam razoavelmente numa casa muito apertada, sem boas empregadas, e
em grande confusão quando ela estava sozinha, ou só no pão com manteiga, mas
de vez em quando – Mrs. Holman, agora ao longe, tomava-a pela magricela
mais seca e antipática que jamais conhecera, vestida além disso de maneira
ridícula, e falaria a todos da fantástica aparência de Mabel – de vez em quando,
pensou Mabel Waring, deixada sozinha no sofá azul, mexendo na almofada para
parecer ocupada, pois não iria juntar-se a Charles Burt e Rose Shaw, que
tagarelavam como gralhas, rindo dela talvez perto da lareira – de vez em quando
lhe vinham, sim, uns deliciosos momentos, ao ler de noite na cama, por exemplo,
ou na areia e ao sol, à beira-mar, na Páscoa – que ela o recorde pois – um
grande tufo de vegetação praiana a erguer-se todo retorcido como um embate de
lanças contra o céu, que era azul e liso como um ovo de porcelana, tão firme, tão
duro, e ademais a melodia das ondas – “Silêncio, silêncio!”, eles diziam, e a
gritaria das crianças que se divertiam na água – sim, esse era um momento
divino, e ela ali se achava então, sentia, nas mãos da Deusa que era o mundo;
uma Deusa de coração meio duro, mas belíssima, um cordeirinho posto no altar
(a gente pensava essas bobagens, mas não tinha importância, desde que as não
dissesse nunca). E também com Hubert ela às vezes e inesperadamente vivia –
ao cortar a carne do almoço de domingo, ou sem razão, ao abrir uma carta, ao
entrar num quarto – seus momentos divinos, quando disse a si mesma (pois
jamais o diria a outra pessoa): “É isso aí. Foi o que aconteceu. É isso mesmo!”. E
era igualmente surpreendente o contrário disso – ou seja, quando tudo estava em
ordem – música, tempo, férias, quando havia razões de sobra para ser feliz –
nada de nada acontecia. A felicidade não vinha. Tudo era chato, apenas chato, e
pronto.


De novo sua deplorável pessoa, sem dúvida! Ela sempre tinha sido uma
mãe rabugenta, fraca, insatisfatória, uma esposa vacilante, que se recostava
indolentemente numa espécie de crepuscular existência com nada de muito claro
ou de ousado, ou de mais isso que aquilo, como seus irmãos e irmãs, à exceção
talvez de Herbert – todos eles eram as mesmas e pobres criaturas que tinham
água nas veias e que nada faziam. Porém em meio àquela vida rastejante e lenta
subitamente ela se achava na crista de uma onda. A desditosa mosca – onde foi
que lera o conto, que insistia em lhe voltar à lembrança, sobre a mosca e o pires?
– se debatia para fora. Sim, ela tinha tais momentos. Mas, agora que estava com
quarenta anos, eles poderiam se tornar cada vez mais raros. E ela cessaria pouco
a pouco de continuar seu esforço. Só que isso era deplorável! Não era para ser
aguentado! Isso a fazia sentir-se envergonhada de si!


Amanhã ela iria à Biblioteca de Londres. E encontraria algum livro
proveitoso, maravilhoso, surpreendente, por mero acaso, um livro escrito por um
clérigo, por um americano de quem ninguém jamais ouvira falar; ou andaria
pela Strand, para também por acaso entrar num auditório onde um trabalhador
falava sobre a vida nas minas, e de repente haveria de tornar-se uma nova
pessoa. Ela seria completamente transformada. Ela usaria um uniforme; ela
pertenceria a uma irmandade qualquer; não voltaria nunca mais a pensar em
roupas. Depois disso nunca lhe faltaria uma perfeita clareza no tocante a Charles
Burt e a Miss Milan, a esta sala e àquele quarto; e seria assim para sempre, dia
após dia, tal qual se cortasse a carne ou estivesse deitada ao sol relaxando. Assim
seria!
Assim ela se levantou do sofá azul onde estava, e o botão amarelo, no
espelho, levantou-se também, e dali acenou para Charles e Rose, para mostrar
que não dependia deles em nada, e o botão amarelo saiu do espelho e as lanças
todas se juntaram para cravar-se em seu peito quando ela andou em direção a
Mrs. Dalloway e disse: “Boa noite”.
“Mas ainda é tão cedo”, disse Mrs. Dalloway, que era sempre a delicadeza
em pessoa.


“Tenho mesmo de ir”, disse Mabel Waring. “Mas lamento”, acrescentou em
sua voz vacilante e fraca, que só soava ridícula quando ela tentava reforçá-la,
“porque eu tive um imenso prazer”.
“Tive um imenso prazer”, disse a Mr. Dalloway, quando cruzou com ele na
escada.
“Mentiras, mentiras, mentiras!”, disse a si mesma, nisso que continuou a
descer, e “Bem no meio do pires!”, disse ainda consigo, ao agradecer a ajuda
que Mrs. Barnet lhe dava, para então enrolar-se toda, e mais, e mais, naquela
capa chinesa que ela usava há vinte anos.


A APRESENTAÇÃO
Ao ver que Mrs. Dalloway a espiava com ar reprovador lá do outro lado da sala,
Lily Everit quase chegou a rezar para que ela não viesse incomodá-la; no
entanto, quando Mrs. Dalloway se aproximou com a mão direita levantada e um
sorriso que Lily sabia (embora fosse sua primeira festa) que queria dizer: “Mas
você tem de sair aí do seu canto para conversar”, um sorriso ao mesmo tempo
benevolente e enérgico, imperioso, ela sentiu a mais estranha mistura de
excitação e medo, do desejo de ser deixada sozinha com o anseio de que a
tirassem dali para ser lançada ao fundo dos escaldantes abismos. Mrs. Dalloway
porém foi interceptada; abordada por um idoso senhor de bigode branco e dando
assim um prazo de dois minutos para Lily Everit se apertar bem nos braços,
como um mastro no mar, e saborear, como um copo de vinho, a lembrança do
seu trabalho sobre o caráter do deão Swift, ao que o professor Miller tinha dado,
na manhã desse dia, três estrelas vermelhas; primeiro lugar. Primeiro lugar; repetiase
isso, mas a bebida agora estava muito mais fraca do que diante do grande copo
esvaziado aos poucos (um gole aqui, outro ali), quando ela estivera com sua irmã e
Mildred, a empregada. Ao moverem-se à sua volta as mãos das duas, sentiu que se
punham em deleitável animação na superfície, mas que por baixo jazia intacto,
como um bloco de metal reluzente, seu ensaio sobre o caráter do deão Swift, e
todos os elogios feitos, quando ela desceu pela escada e ficou na entrada à espera de
um carro de aluguel – Rupert tinha saído de seu quarto e dito que ela estava ótima
–, agitaram-se na superfície, passaram como brisa entre fitas, mas não mais que
isso. Dividia-se a vida (ela tinha certeza) em fato, aquele trabalho, e ficção, a saída
de agora, em pedra e em onda, pensou ela já rolando a caminho e vendo as coisas
com tal intensidade que haveria para sempre de ver a verdade e a si, branco reflexo
inextricavelmente mesclado ao negrume das costas do chofer: o momento de
visão. Depois, quando ela entrou na casa, assim que viu tanta gente, uns a subir,
outros descendo escadas, aquele duro fragmento (seu trabalho sobre o caráter de
Swift) começou a perder a consistência, a
derreter, não havia mais como segurá-lo e toda a sua pessoa (não mais cortante
como um diamante partindo o coração da vida em pedaços) transformou-se
numa névoa de alarme, apreensão e defensiva, quando acuada ela ficou em seu
canto. Este então era o mundo, o famoso lugar: a sociedade.


Olhando em volta, Lily Everit instintivamente escondeu seu ensaio, de tão
envergonhada que estava agora, e também tão confusa, e na ponta dos pés não
obstante para ajustar seu foco e manter nas devidas proporções (pois que as
anteriores eram vergonhosamente indevidas) aquelas coisas em constante
diminuição e expansão (como chamá-las? – de pessoas – de impressões das vidas
das pessoas?) que pareciam ameaçá-la e sobrepor-se a ela, transformando tudo
em água, deixando-lhe apenas – pois disso ela não abdicaria – o poder de estar
acuada.


Agora Mrs. Dalloway, que nunca tinha arriado o braço de vez, dando a
entender pelo modo como o movia que não se esquecera dela, fora apenas
interrompida pelo velho soldado de bigode branco, esticou-o decididamente para
partir em sua direção e dizer à moça tão encantadora e tímida, de pele clara,
brilho nos olhos, cabelo preto poeticamente encaracolado na cabeça e o corpo
magro num vestido que parecia estar deslizando:
“Venha que eu vou lhe apresentar”, e nisso Mrs. Dalloway hesitou, e lembrouse
então de que Lily era a inteligente, a que lia poesia, e olhou em volta procurando
algum jovem, um rapaz que tivesse acabado de sair de Oxford, que tivesse lido tudo
e pudesse conversar sobre Shelley. E, pegando-a pela mão, levou Lily Everit para
um grupo onde havia rapazes conversando, entre os quais Bob Brinsley.
Lily Everit se retraiu um pouco, poderia ter sido o barco a vela, instável e
reverente, na esteira de um vapor, e sentiu, enquanto era conduzida por Mrs.
Dalloway, que agora isso ia acontecer; que nada o poderia impedir agora; nem
livrá-la (e só pedia que acabasse logo) de ser lançada num redemoinho onde ela
iria perecer ou salvar-se. Mas o que era esse redemoinho?


Oh, era feito de um milhão de coisas, todas diferentes dela; a abadia de
Westminster; a sensação de que eram enormemente altos e solenes os prédios
em derredor; e a de ser mulher. Era essa talvez a que se tornava evidente, a que
permanecia, e era em parte o vestido, mas todos os pequenos gestos de
cavalheirismo e respeito da sala de visitas – tudo a fazia crer que ela saía então
da crisálida para ser proclamada o que na confortável escuridão de sua infância
nunca tinha sido – essa frágil e bela criatura diante da qual os homens se
curvavam, essa criatura limitada e circunscrita que não podia fazer o que bem
quisesse, essa borboleta com milhares de facetas nos olhos e uma delicada e fina
plumagem, com dificuldades e suscetibilidades e tristezas inúmeras; uma mulher.
Ao andar com Mrs. Dalloway, atravessando a sala, ela aceitou o papel que
lhe era imposto agora e, naturalmente, excedeu-se um pouco nele, como um
soldado, orgulhoso das tradições de um uniforme antigo e famoso, é capaz de
exceder-se, sentindo-se consciente, enquanto andava, de seus adereços; de seus
sapatos apertados; de seu cabelo cacheado e enrolado; e de que, se deixasse cair
um lenço (o que já tinha acontecido), um homem se abaixaria às pressas para o
apanhar para ela; acentuando assim a fragilidade, a artificialidade de seu porte
antinatural, já que afinal não eram dela essas coisas.


Dela, isto sim, era a inclinação a correr, a meditar em longos passeios
solitários, pulando portões, pisando na lama, para através da névoa, do sonho, do
êxtase da solidão ver os volteios da tarambola, espantar os coelhos, entrar no
coração das matas ou de vastos e ermos matagais com pequenas cerimônias a
que ninguém assistia, ritos privados, pura beleza oferecida por besouros, por líriosdo-
vale, por folhas secas, por águas paradas, que não ligavam a mínima para o
que os seres humanos pensavam a seu respeito e lhe enchiam o espírito de
entusiasmo e espanto e a mantinham por lá, até que ela viesse a tocar, para se
refazer, no pilar do portão – tudo isso, até essa noite, era o comum em sua vida,
por isso ela se conhecia, por isso gostava de si mesma e conquistava a afeição
dos seus, de pai e mãe, de irmãos e irmãs; já esta outra era uma flor que tinha
desabrochado há dez minutos. Ao abrir-se a flor também se abria,
irreversivelmente, o mundo da flor, tão diferente, tão estranho; as torres de
Westminster; os prédios altos e formais; conversas; esta civilização, sentia ela, um
pouco para trás, mas puxada por Mrs. Dalloway, este modo ordeiro de vida, que
lhe caía dos céus como uma canga no pescoço, lenta e inflexivelmente, numa
evidência sem contestação. Ao contemplar seu ensaio, obscureceram-se, mas
pacífica e pensativamente, as três estrelas vermelhas, como que cedendo à
pressão do inquestionável poder, ou melhor, à convicção de não ser dela, de não
lhe tocar, nem dominar nem se fazer valer; cabia-lhe, isto sim, ventilar e
embelezar a vida ordeira, onde tudo já estava feito; torres altas, sinos solenes,
apartamentos construídos de tijolo em tijolo pelo trabalho dos homens, igrejas
construídas pelo trabalho dos homens, parlamentos também; e até mesmo o
entrelaçado dos fios do telégrafo, pensou ela, olhando pela janela enquanto
andava. O que tinha para opor a essas grandes realizações masculinas? Um
ensaio sobre o caráter do deão Swift! Quando afinal chegou ao grupo, que era
dominado por Bob Brinsley (de calcanhar no guarda-fogo da lareira, cabeça
jogada para trás), com sua testa grande e honesta, sua autoconfiança e finura,
sua honra e pujante bem-estar físico, seu bronzeado, seu desembaraço, sua direta
descendência de Shakespeare, o que podia ela fazer senão pegar seu ensaio e oh!
toda sua própria pessoa e estendê-los no chão como um casaco para ele pisar em
cima, como uma rosa na qual ele atirar? O que ela fez, de modo enfático, quando
Mrs. Dalloway, ainda a segurá-la pela mão, como para a impedir de fugir desta
suprema prova, apresentou um ao outro: “Mr. Brinsley – Miss Everit. Dois que
têm amor por Shelley ”. Mas o dela, comparado ao dele, nem era amor.
Ao dizer isso, Mrs. Dalloway se sentiu, como sempre se sentia ao se
lembrar da sua mocidade, absurdamente comovida; o brilho de um encontro
entre jovens, por suas mãos, a atiçar como o da concussão de aço em sílex
(ambos perceptivelmente endurecidos pelo seu sentimento) o mais belo e o mais
antigo dos fogos, tal como o viu na mudança de expressão de Bob Brinsley, da
indiferença à aquiescência, ao formalismo para o aperto de mãos, que
pressagiava, pensou Clarissa, a ternura, a bondade, a solicitude de mulher latentes
em todos os homens, visão que era para ela de trazer lágrimas aos olhos, assim
como se comovia ainda mais intimamente ao ver em Lily o próprio olhar da
timidez, o olhar assustado, decerto o mais bonito de todos no rosto de uma garota;
e um homem sentindo isso por uma mulher, e uma mulher, por um homem, para
derivar de tal contato toda essa profusão de casas, provações, sofrimentos,
profunda alegria e vedação definitiva em face da catástrofe, doce era o coração
da humanidade, pensou Clarissa, e sua própria vida (apresentar um casal a fazia
lembrar de seu primeiro encontro com Richard!), infinitamente abençoada. E
assim ela foi em frente.


Mas, pensou Lily Everit. Mas – mas – mas o quê?
Oh, nada, pensou às pressas, abafando suavemente seu instinto aguçado.
Sim, ela disse. Ela gostava de ler.
“Então também deve escrever?”, disse ele, “Talvez poemas?”.
“Ensaios”, ela disse. E não deixaria aquele horror se apossar de sua pessoa.
Igrejas e parlamentos, apartamentos e até os fios do telégrafo – tudo, disse a si
mesma, feito pelo trabalho dos homens, e este rapaz, disse a si mesma, descendia
de Shakespeare em linha direta, e ela assim não deixaria esse terror, essa suspeita
de alguma coisa diferente, apropriar-se dela e contrair-lhe as asas e a impelir
para longe, na solidão. Mas, quando disse isso, ela o viu – de que outro modo
poderia descrevê-lo? – matar uma mosca. Ele arrancou as asas de uma mosca,
pé apoiado no guarda-fogo, cabeça jogada para trás, enquanto falava
insolentemente, arrogantemente de si; porém ela nem ligava para o grau de
arrogância ou insolência que ele lhe demonstrava, lamentando apenas ser cruel
com as moscas.


Mas, disse ela, inquietando-se ao abafar essa ideia, por que não, já que ele é
o maior dos objetos mundanos? E adorar, adornar, embelezar era tarefa sua,
como também ser adorada, para o quê tinha asas. Mas ele falava; mas ele
olhava; mas ele ria; ele arrancou as asas de uma mosca. Puxou-as das costas
com suas mãos ágeis e fortes, e ela o viu fazendo isso; e não podia ocultar a si
mesma essa lembrança. Mas é necessário que seja assim, argumentou, pensando
nas igrejas, nos parlamentos, nos blocos de apartamentos, e assim tentou dobrar
suas asas nas costas, depois de as ter completamente abaixadas. Mas – mas, o
que era isso, por que era assim? Apesar de tudo ela podia tornar seu ensaio sobre
o caráter de Swift cada vez mais importuno e fazer as três estrelas luzirem
novamente, só que não mais tão claras, tão brilhantes, e sim perturbadas e
manchadas de sangue como se este homem, este ilustre Mr. Brinsley, apenas por
arrancar as asas de uma mosca enquanto falava (de seu próprio ensaio, de si
mesmo e, uma vez, rindo, de uma garota que lá se achava), sobrecarregasse de
nuvens sua leve existência e a deixasse confusa para o resto da vida e contraísse
suas asas nas costas, fazendo-a pensar com horror, quando ele se afastou dela, na
civilização e nas torres, e a canga que havia caído dos céus em seu pescoço
esmagou-a, e ela se sentiu na infeliz situação de uma pessoa nua que, indo à
procura de refúgio nalgum jardim sombreado, de lá é expulsa e lhe é dito – não,
não há santuários, nem borboletas, neste mundo, e esta civilização, igrejas,
parlamentos e apartamentos – esta civilização, disse Lily Everit a si mesma, ao
agradecer os gentis elogios da velha Mrs. Bromley à sua aparência, depende de
mim, e Mrs. Bromley disse depois que Lily, como todos os Everit, parecia “ter o
peso do mundo em suas costas”.


JUNTOS E À PARTE
Mrs. Dalloway apresentou-os, dizendo você vai gostar dele. A conversa começou
minutos antes de qualquer coisa ser dita, pois tanto Mr. Serle quanto Miss Anning
olharam para o céu, e o céu, na cabeça de ambos, prosseguiu a verter seus
significados, embora de um modo bem diferente, até que a presença de Mr. Serle
a seu lado tornou-se tão perceptível para Miss Anning que ela nem pôde mais ver
simplesmente o céu em si mesmo, céu que lá se foi a espraiar pelo corpo alto,
olhos negros, cabelo grisalho, mãos entrelaçadas, pela grave e melancólica (mas
já lhe haviam dito “falsamente melancólica”) face de Roderick Serle, e ela,
sabendo que tolice era aquilo, sentiu-se no entanto compelida a dizer:
“Que noite linda!”.
Pura bobagem! Pura idiotice! Mas qualquer tolice, aos quarenta anos, era
perdoável em presença do céu, que transforma os mais sábios em imbecis –
meros fiapos de palha – e ela e Mr. Serle em átomos, em grãos de poeira, ali
plantados à janela de Mrs. Dalloway, fazendo suas vidas, vistas ao luar, tão longas
quanto e não mais importantes que a de um inseto.


“Bem!”, disse Miss Anning, alisando enfaticamente a almofada do sofá. E
ele se sentando a seu lado. Seria mesmo “falsamente melancólico”, como os
outros diziam? Premida pelo céu, que parecia tornar tudo aquilo um pouco fútil –
o que os outros diziam, o que os outros faziam –, ela disse novamente outra coisa
completamente banal:
“Havia uma Miss Serle que morava em Canterbury nos meus tempos de
criança lá”.
Com o céu na cabeça, todos os túmulos de seus antepassados surgiram de
imediato a Mr. Serle numa luz azul e romântica, e foi com olhos que se
expandiam e escureciam simultaneamente que ele disse: “Sim”.
“Somos na origem uma família normanda, que veio com o Conquistador.
Há um Richard Serle enterrado na catedral. Foi cavaleiro da Ordem da
Jarreteira.”


Miss Anning sentiu ter chegado por acaso ao homem verdadeiro, sobre o
qual foi montado o homem falso. Sob a influência da lua (a lua que para ela
simbolizava o homem, podia vê-la por uma fresta da cortina, e tomava banhos de
lua, goles de lua), era capaz de dizer quase qualquer coisa, e assim se pôs a
exumar o homem verdadeiro que jazia enterrado sob o falso ao dizer a si
mesma: “À frente, Stanley, à frente” – que para ela era um lema, um secreto
incentivo, quando não um açoite, como pessoas de meia-idade costumam ter
para se flagelarem por algum vício inveterado, sendo o dela uma timidez
deplorável, ou melhor, indolência, pois não era tanto que lhe faltasse coragem,
faltava-lhe, isto sim, energia, especialmente para falar com homens, que a
assustavam um pouco, e assim frequentemente suas conversas descambavam
para puras banalidades e ela tinha pouquíssimos amigos homens – pouquíssimos
amigos íntimos em geral, pensou, mas, pensando bem, ela os queria? Já tinha
Sarah, Arthur, o chalé, o cachorro chinês e, naturalmente, aquilo, pensou
mergulhando, encharcando-se, mesmo estando sentada no sofá ao lado de Mr.
Serle, naquilo, na impressão que lhe vinha ao chegar em casa de algo recolhido
ali, uma agregação de milagres, que não podia acreditar que outras pessoas
tivessem (pois era a única a ter Arthur, Sarah, o chalé e o cachorro chinês), e
mais ainda se encharcando na fruição satisfatória e profunda, sentindo que por
ter aquilo e a lua (a lua que era música) ela podia se permitir deixar este homem
e o grande orgulho que ele tinha dos Serle enterrados. Não! Este era o perigo –
não lhe convinha, na sua idade – afundar na letargia. “À frente, Stanley, à
frente”, disse a si mesma e perguntou para ele:


“Conhece Canterbury ?”.
Se ele conhecia Canterbury ! Mr. Serle sorriu, pensando como a pergunta
era absurda – como ela sabia tão pouco, essa mulherzinha calada que tocava
algum instrumento e parecia inteligente e tinha uns olhos bonitos e estava usando
um interessante colar antigo – bem que ela sabia o significado disso. Ser
perguntado se conhecia Canterbury – quando os melhores anos de sua vida, suas
memórias todas, coisas que ele nunca tinha sido capaz de contar a ninguém, mas
que tentara escrever – ah, tinha tentado escrever (e suspirou), estavam todas
centradas em Canterbury : isso o fez rir.


Seu suspiro e depois sua risada, sua melancolia e seu senso de humor
tornavam-no estimado por todos, e ele sabia disso, no entanto o fato de ser
benquisto não compensava as decepções e, se dependia dessa estima que os
outros tinham por ele (fazendo longas, longas, longas visitas a simpáticas damas),
não era porém sem amargor, pois nunca fizera uma décima parte do que poderia
ter feito e sonhou em fazer quando garoto em Canterbury. Com uma estranha
sentiu uma renovada esperança, porque não poderiam dizer que ia deixar de
cumprir o prometido, e a capitulação a seu charme dar-lhe-ia um novo começo
– aos cinquenta! Ela tocou na fonte. Campos e flores e prédios cinzentos
formaram gotas prateadas que escorriam pelas paredes desoladas e negras de
sua mente. Seus poemas frequentemente começavam com uma imagem assim.
E ele, sentado ao lado dessa mulher tão quieta, sentiu o desejo de fazer imagens
agora.


“Sim, eu conheço Canterbury ”, disse, sentimental e reminiscentemente,
dando margem, sentiu Miss Anning, a perguntas discretas, e era isso o que o fazia
interessante a tantas pessoas, mas essa receptividade e extraordinária facilidade
para conversar de sua parte é que foram sua ruína, como não raro ele pensava,
tirando as abotoaduras e pondo suas chaves e moedas no toucador depois de uma
daquelas festas (durante a temporada ele às vezes saía quase todas as noites), e
ao descer para o café tornando-se muito diferente, ranzinza, desagradável à
mesa com sua esposa, que era inválida e não saía nunca de casa, mas tinha
velhos amigos, em geral velhas amigas, que a vinham ver de vez em quando,
interessadas em filosofia hindu e diferentes curas e diferentes médicos, que
Roderick Serle mandava às favas com alguma observação cáustica e inteligente
demais para ela, que se limitava a responder com gentis reclamações e uma ou
duas lágrimas – tinha fracassado, como tantas vezes pensava, porque não
conseguia se desligar totalmente da sociedade e da companhia das mulheres, que
lhe era tão necessária, para escrever. Envolvera-se muito a fundo com a vida – e
a essa altura ele cruzaria as pernas (seus movimentos eram sempre um pouco
anticonvencionais e distintos) e, para não se culpar, punha a culpa na exuberância
de sua natureza, que comparava favoravelmente com a de Wordsworth, por
exemplo, e, posto que ele já dera tanto aos outros, sentia, deixando repousar nas
mãos a cabeça, que os outros deveriam por sua vez ajudá-lo, sendo isso o
prelúdio, trêmulo, fascinante, estimulante, da conversa a manter; e em sua mente
borbulhavam imagens.


“Ela parece uma árvore frutífera – uma cerejeira em flor”, disse ele,
olhando para uma mulher ainda moça com um belo cabelo branco. Era uma
imagem de tipo primoroso, pensou Ruth Anning – sim, um primor, porém ela não
tinha certeza de estar gostando desse homem distinto, melancólico, com seus
gestos; e é curioso, pensou ela, como os nossos sentimentos são influenciados.
Não gostava dele, mas reconhecia ter gostado da comparação da mulher com a
cerejeira que foi feita por ele. Fibras dela, sem rumo fixo, em flutuação
caprichosa, como os tentáculos de uma anêmona-do-mar, ora vibravam, ora se
repuxavam, e o seu cérebro, a quilômetros dali, frio e distante, suspenso no ar,
recebia mensagens que processaria a tempo de, quando as pessoas falassem de
Roderick Serle (e ele era uma figura e tanto), ela poder dizer sem hesitar: “Gosto
dele”, ou “Não gosto dele”, e assim ter definida sua opinião para sempre. Uma
ideia estranha; uma ideia solene; lançando uma luz insólita sobre a composição
da sociabilidade humana.


“É estranho que a senhora tenha conhecido Canterbury ”, disse Mr. Serle. “É
sempre um choque”, prosseguiu (tendo a dama de cabelo branco passado),
“quando se encontra alguém” (nunca eles tinham se encontrado antes), “por
acaso, por assim dizer, que toca nas fímbrias do que significa tanto para a própria
pessoa, e o faz fortuitamente, pois suponho que Canterbury não lhe tenha sido
senão uma cidade antiga e bonita. Pois então a senhora passou um verão lá com
uma tia?”. (Isso era tudo que Ruth Anning ia dizer a ele sobre a visita que ela
fizera a Canterbury.) “E viu o que havia lá para ver e foi-se embora e nunca
pensou nisso de novo.”


Deixe ele pensar assim; não gostando dele, queria mais é que sumisse às
carreiras com uma ideia absurda a seu respeito. Pois seus três meses em
Canterbury, na realidade, tinham sido incríveis. Lembrava-se nos menores
detalhes, embora fosse tão só uma visita casual, da ida à casa de Miss Charlotte
Serle, uma conhecida de sua tia. Era capaz de repetir ainda agora as próprias
palavras de Miss Serle sobre o trovão: “Sempre que acordo e ouço um trovão de
noite, penso que alguém foi morto”. E via o tapete de pelos duros, com desenhos
em forma de diamante, e os olhos castanhos, impregnados de brilho, da idosa
senhora, segurando sua xícara de chá pelo meio enquanto falava aquilo sobre o
trovão. E via sempre Canterbury, com suas nuvens de trovoada, a lívida floração
das macieiras e os longos, cinzentos fundos de seus prédios.
O trovão despertou-a de sua pletórica síncope de indiferença, que é típica da
meia-idade; “À frente, Stanley, à frente”, disse a si mesma; ou seja, esse homem
não há de me escapar, como todos os outros, com essa falsa suposição; vou dizerlhe
a verdade.


“Adorei Canterbury ”, ela disse.
Instantaneamente ele se animou. Era seu dom, seu defeito, seu destino.
“Adorou”, repetiu. “Bem se vê que adorou.”
Seus olhos se encontraram; ou melhor, colidiram, pois ambos sentiram que
por trás dos olhos a pessoa apartada, que se senta no escuro enquanto seu
companheiro superficial e ágil faz todas as piruetas e acenos, sem deixar parar o
espetáculo, bruscamente se ergueu; tirou a capa; confrontou-se com a outra. Foi
alarmante; foi terrível. Mas ambos, brunidos pela idade, tinham sua reluzente
lisura, e Roderick Serle sairia assim para talvez umas dez festas ou mais na
temporada sem sentir nada fora do comum, ou apenas remorsos sentimentais e o
desejo de belas imagens – como aquela da cerejeira em flor – estagnando-se
nele o tempo todo, sem a menor alteração, uma espécie de superioridade em
relação ao circunstante, uma impressão de recursos inexplorados, que o
mandava de volta para casa insatisfeito com sua vida, consigo mesmo,
bocejando, vazio, volúvel. Mas agora, e não mais que de repente, como um raio
branco no nevoeiro (imagem que assomava forjada pela inevitabilidade da luz),
aquilo tinha acontecido ali; o velho êxtase da vida; sua invencível investida; pois,
se não era agradável, ao mesmo tempo alegrava e rejuvenescia, enchendo
nervos e veias de filamentos de fogo e gelo; era aterrador.
“Canterbury há vinte anos”, disse Miss Anning, como alguém põe uma
sombra numa luz intensa ou cobre um pêssego em brasa, por estar muito
maduro, muito forte, muito pleno, com uma folha verde.


Às vezes ela sentia vontade de ter casado. Às vezes a tíbia paz da meiaidade,
com seus mecanismos automáticos para evitar que o corpo e a mente se
magoassem, parecia-lhe, comparada ao trovão e à lívida floração das macieiras
de Canterbury, torpe. Podia imaginar uma coisa diferente, mais como um
relâmpago, mais intensa. Podia imaginar uma sensação física. Podia imaginar…
E, por estranho que fosse, pois ela nunca o tinha visto, seus sentidos, aqueles
tentáculos que vibravam e eram repuxados antes, agora não mandavam mais
mensagens, jaziam quiescentes, como se ela e Mr. Serle se conhecessem à
perfeição, como se estivessem de fato tão unidos que lhes bastava flutuar lado a
lado descendo pela corrente.


De tudo que existe, nada é tão estranho como as relações humanas, pensou
ela, com suas mudanças, sua extraordinária irracionalidade, pois o desagrado que
ela havia sentido já era agora quase amor intenso e arrebatado, mas, tão logo
essa palavra “amor” lhe ocorreu, ela a rejeitou, pensando novamente quão
obscura era a mente, com suas pouquíssimas palavras para todas essas
percepções surpreendentes, essas alternâncias de prazer e dor. Pois que nome se
dava àquilo? Era o que ela agora sentia, o retraimento da afeição humana, o
desaparecimento de Serle e a necessidade instantânea sob a qual se achavam
ambos de encobrir o que era tão desolador, tão degradante para a natureza
humana, que todos tentavam enterrá-lo em recato para eximir-se à visão – esse
retraimento, essa violação da confiança e, procurando uma fórmula decorosa,
reconhecida e aceita, de funeral, ela disse:


“Por mais que façam, não conseguirão, é claro, estragar Canterbury ”.
Ele sorriu; aceitou a frase; cruzou as pernas ao contrário. Ela fez seu papel;
ele, o dele. E assim as coisas terminaram. Veio logo sobre ambos essa paralisante
cessação de sentimento, quando nada irrompe da mente, quando suas paredes
parecem de ardósia; quando o vazio quase dói, e os olhos petrificados e fixos
veem o mesmo ponto – uma forma, um balde de carvão – com uma exatidão
que é aterradora, pois nenhuma emoção, nenhuma ideia, nenhuma impressão de
qualquer tipo surge para alterá-la, modificá-la, embelezá-la, uma vez que as
fontes do sentir parecem lacradas e, enrijecendo-se a mente, enrijece-se
também o corpo; fortemente estatuesco, sem deixar que Mr. Serle ou Miss
Anning pudessem se mexer ou falar, e sentindo-se eles como se um encantador
os tivesse salvo, e a fonte fez a vida correr por todas as veias, quando Mira
Cartwright, dando um malicioso tapinha no ombro de Mr. Serle, disse:
“Eu o vi nos Meistersinger, passando bem na minha frente. Seu malvado”,
disse Miss Cartwright, “não merece que eu volte a lhe dirigir a palavra”.
E eles puderam separar-se.


O HOMEM Q UE AMAVA SUA ESPÉCIE
Indo às pressas por Deans Yard essa tarde, Prickett Ellis deu de cara com Richard
Dalloway, ou melhor, nisso que eles iam passando, o encoberto olhar de relance
que cada qual lançou ao outro, por baixo do chapéu e por cima do ombro, alargouse
numa explosão de reconhecimento; há vinte anos que eles não se encontravam.
Na escola, tinham sido colegas. E Ellis, o que andava fazendo? Advocacia? Ah, sim,
é claro – acompanhara pelos jornais o caso. Mas era impossível conversar ali. Que
tal aparecer logo mais lá em casa? (Eles moravam no mesmo lugar de sempre – na
primeira transversal.) Viriam uma ou duas pessoas. Talvez Joy nson. “Um figurão
agora”, disse Richard.


“Está bem – então até logo à noite”, disse Richard e seguiu seu caminho,
“feliz da vida” (o que era pura verdade) por haver encontrado aquele camarada
engraçado, que não mudara nem um pingo desde os tempos de escola – o
mesmo garotinho gorducho e baixote, saturado de preconceitos, mas
incomumente brilhante – ganhou o Newscastle. Pois bem – e lá se foi ele.
Prickett Ellis, contudo, ao se virar e ver Dalloway sumindo, preferia agora
não o ter encontrado ou, pelo menos, pois pessoalmente sempre gostara dele, não
ter prometido que iria à reunião. Dalloway era casado, dava festas; não era da
mesma espécie que ele, que teria de se vestir. Entretanto, chegando a noite, supôs
que, como havia prometido, e não querendo ser grosseiro, tinha mesmo de ir.
Mas que entretenimento mais pavoroso! Joy nson estava lá; e eles não
tinham nada o que dizer um ao outro. Em criança, era um garoto presunçoso;
crescido, parecia dar mais importância a si mesmo – e isso era tudo; não havia
na sala outra simples alma que Prickett Ellis conhecesse. Nenhuma mesmo.
Assim, não podendo ir-se embora logo, sem dizer uma palavra a Dalloway, que
parecia sobrecarregado de obrigações, num colete branco, indo e vindo em
azáfama, o jeito era aguentar e esperar. Era o tipo de coisa que o deixava
indignado. Pensar em homens e mulheres adultos, responsáveis, fazendo isso a
vida inteira, toda noite! Os traços de seu rosto barbeado, azul e vermelho,
acentuaram-se quando ele se encostou na parede, em completo silêncio; embora
trabalhasse como um cavalo, mantinha-se em boa forma com exercícios; e se
mostrava ameaçador e duro, como se tivesse o bigode enregelado. Ele se eriçou,
ele se irritou. As roupas pobres que usava faziam-no parecer desleixado,
insignificante, anguloso.


Ociosos, tagarelas, com roupas demais e sem ideias, sem uma que fosse, na
cabeça, os elegantes cavalheiros e damas seguiam conversando e rindo; Prickett
Ellis observava-os e comparou-os aos Brunner que, quando ganharam a causa
contra a Cervejaria Fenners’ e receberam duzentas libras de indenização (nem a
metade do que deveriam ter ganho), logo gastaram cinco num relógio para ele.
Bem o tipo de comportamento adequado; o tipo de coisa que o comovia, e olhou
com mais severidade ainda para aquelas pessoas, supervestidas, cínicas,
prósperas, e comparou o que estava sentindo agora com o que sentira às onze
horas da manhã em que o velho Brunner e esposa, em suas melhores roupas,
pessoas idosas, com o ar mais limpo e respeitoso possível, foram vê-lo para darlhe
essa pequena lembrança, como disse o velho, perfeitamente aprumado para
fazer seu discurso de gratidão e apreço pela maneira tão capaz de conduzir nossa
causa e como, aparteou Mrs. Brunner, eles sabiam que tudo se devia a ele. E
estavam profundamente gratos por sua generosidade – porque ele, é claro, não
tinha cobrado nada.


Quando ele apanhou o relógio e colocou-o em cima da lareira, bem no
meio, sentiu estar com vontade de que ninguém visse seu rosto. Para isso é que
trabalhava – era essa sua recompensa; e olhou para as pessoas que na realidade
estavam diante de seus olhos como se elas dançassem por cima da cena em seu
escritório e por ela fossem expostas e, quando tudo sumia – quando os Brunner
sumiam –, só restava ele mesmo, como que deixado daquela cena e a confrontarse
com esta população hostil, um homem completamente simples, sem nenhuma
sofisticação, um homem do povo (ele se endireitou), muito malvestido, chamando a
atenção, sem nenhum ar, nenhum encanto especial, homem pouco calejado em
disfarçar seus sentimentos, um homem comum, um ser humano como outro
qualquer, lançado contra o mal, a corrupção, a impiedade da sociedade. Mas ele
não ia continuar olhando. Pôs os óculos e já se punha a examinar os quadros agora.
Leu os títulos de uma fileira de livros; quase todos de poesia.

 

Bem que ele gostaria de reler alguns de seus velhos favoritos – Shakespeare, Dickens –, bem que gostaria
de ter tempo para ir um dia à National Gallery, mas não podia – não podia mesmo.
Com o mundo na situação em que estava – era realmente impossível. O dia inteiro
havia gente querendo sua ajuda, clamando, a bem dizer, por ajuda. Não era uma
época para se ter luxo. E ele olhava as poltronas e os cortadores de papel e os
livros bem encadernados e balançava a cabeça, sabendo que nunca teria tempo,
nunca teria coragem, e alegrava-se ao pensar assim, de se permitir tais luxos.
Aqui, as pessoas ficariam chocadas se soubessem quanto ele pagava por seu tabaco; e que a roupa que
vestia tinha sido emprestada. Sua única extravagância era um barquinho a vela
na lagoa de Norfolk. Isso ele se permitia. Gostava de uma vez por ano sumir da
vista de todos para se pôr de costas num campo. Pensou como se espantariam –
essas pessoas tão finas – se soubessem quanto prazer ele extraía do amor à
natureza, termo que usava por ser tão antiquado; desde garoto ele conhecera
campos e árvores.


Ficariam chocadas essas finas pessoas. E ele de fato, ali em pé, pondo seus
óculos no bolso, a cada instante se sentia mais chocante. Sentimento dos mais
desagradáveis. Não sentira aquilo – que amava a humanidade, que pagava cinco
pence pela onça de tabaco, que amava a natureza – natural e tranquilamente.
Cada um desses prazeres tinha se transformado num protesto. Sentia que essas
pessoas que ele desprezava faziam-no aguentar e pronunciar-se e justificar-se.
Não parava de dizer: “Eu sou um homem comum”. E o que disse a seguir,
envergonhou-se de fato de o ter feito, mas disse: “Eu já fiz mais por minha
espécie num só dia do que o resto de vocês em suas vidas”. Realmente era mais
forte do que ele; vivia a se lembrar de cena após cena, como a de quando os
Brunner tinham lhe dado o relógio – vivia a se lembrar das belas coisas que já
haviam dito de sua generosidade, seu humanitarismo, de como já ajudara a
tantos. Estava sempre a se ver como sábio e tolerante servidor da humanidade. E
desejou que pudesse repetir em voz alta seus louvores. Era desagradável que a
sensação de sua bondade o afligisse por dentro. E ainda mais desagradável que
não pudesse contar a ninguém o que haviam dito a seu respeito. Graças a Deus,
dizia-se a toda hora, volto a trabalhar amanhã; entretanto já não ficaria mais
satisfeito em apenas se esgueirar pela porta e ir para casa. Tinha de ficar, tinha
de ficar até se justificar. Mas como poderia fazê-lo? Naquela sala cheia de gente,
não conhecia vivalma a quem falar.
Finalmente Richard Dalloway apareceu.
“Quero lhe apresentar Miss O’Keefe”, disse ele. Miss O’Keefe olhou-o em
cheio nos olhos. Era uma mulher meio arrogante, de maneiras abruptas, na casa
dos trinta.


Miss O’Keefe quis um sorvete ou algo para beber. E a razão de o ter pedido
a Prickett Ellis, de um modo que lhe pareceu soberbo e injustificável, foi que ela
tinha visto uma mulher e duas crianças, paupérrimos, exaustos, agarrados nas
grades de uma praça, de olhos compridos para dentro, naquela tarde tão quente.
Não podem deixar que entrem?, tinha pensado, subindo sua compaixão como
onda; e sua indignação fervendo. Não; no momento seguinte ela se reprovou com
aspereza, como se se enfrentasse no boxe. Nem toda a força do mundo é capaz
disso. Ela assim apanhou e devolveu a bola de tênis. Nem toda a força do mundo
é capaz disso, disse furiosa da vida, e foi por isso que disse tão imperiosamente ao
homem desconhecido:


“Dê-me um sorvete”.
Muito antes de ela o ter acabado, Prickett Ellis, de pé a seu lado sem tomar
nada, disse-lhe que há quinze anos ele não vinha a uma festa; disse-lhe que o
terno que estava usando fora emprestado por seu cunhado; disse-lhe que não
gostava desse tipo de coisa e teria sentido grande alívio se continuasse e dissesse
que era um homem comum, com marcada preferência por pessoas bem
simples, quando então lhe falaria (para envergonhar-se disso depois) dos Brunner
e do relógio, mas ela disse:


“O senhor viu A tempestade?”.
Ou então (pois A tempestade ele não tinha visto) leu algum livro? De novo
não, e então, nisso que ela punha seu sorvete de lado, costumava ler poesia?
E Prickett Ellis, sentindo subir-lhe algo por dentro que acabaria por decapitar
esta moça, transformá-la em vítima, massacrá-la, fê-la sentar-se lá, onde
ninguém os interromperia, em duas cadeiras, no jardim vazio, pois todos estavam
no andar de cima, podendo-se ouvir apenas um incessante zumbido e a falação e
um trintlim, como o louco acompanhamento de uma orquestra fantasma a um
gato ou dois atravessando o gramado, e a ondulação das folhas e as lanternas
chinesas vermelhas e amarelas balançando como frutas penduradas no ar – a
conversa parecia uma frenética dança musical de esqueletos relacionada a algo
muito real, e cheia de sofrimento.


“Que beleza!”, disse Miss O’Keefe.
Oh, essa nesga de grama, com a massa negra e alta das torres de
Westminster em torno, era bela mesmo, depois da sala de visitas; depois da
barulheira, era silenciosa. E eles, afinal de contas, tinham aquilo – a mulher
cansada, as crianças.
Prickett Ellis acendeu seu cachimbo. Isso a deixaria chocada; enchera-o de
fumo vagabundo – cinco pence e meio a onça. Pensou como estaria em seu
barco, fumando deitado, pôde ver-se sozinho, à noite, fumando sob as estrelas.
Pois durante essa noite ele estivera sempre pensando que aparência teria, se as
pessoas ali o olhassem. Ali, disse a Miss O’Keefe, riscando um fósforo na sola da
bota, não conseguia ver nada de particularmente bonito.


“Talvez”, disse Miss O’Keefe, “o senhor não ligue para a beleza”. (Ele
dissera não ter visto A tempestade; não ter lido nenhum livro; seu bigode, seu
queixo, a corrente de relógio de prata, tudo nele exalava um ar de penúria.) Mas
para isso, pensou ela, ninguém precisava gastar nada; os museus e a National
Gallery eram grátis; e o campo também. Decerto sabia das objeções – lavar,
cozinhar, crianças; mas a essência da coisa, o que eles todos tinham medo de
dizer, era que a felicidade é barata à beça. Pode até sair de graça. A beleza.
Prickett Ellis deu-lhe então o que ela merecia – essa mulher abrupta,
arrogante e pálida. Disse-lhe, com uma baforada de seu fumo barato, o que
havia feito esse dia. De pé às seis; ouvindo gente; suportando o cheiro de esgoto
de uma área sórdida; e depois no tribunal.


Nisso hesitou, querendo dizer-lhe algo de si, dos seus afazeres pessoais.
Porém, por reprimir isso, tornou-se ainda mais sarcástico. Disse que já se sentia
mal só de ouvir mulheres bem-vestidas e bem-alimentadas (ela encolheu os
lábios, pois era magra e sua roupa não estava assim tão na moda) falando de
beleza.
“A beleza!”, disse ele. Temia não entender a beleza tomada à parte dos
seres humanos.
Olharam assim para o jardim vazio, onde oscilavam luzes e, bem lá no
meio, com uma pata no ar, hesitava um gato.
A beleza à parte dos seres humanos? O que ele queria dizer com isso?,
perguntou ela de repente.
Pois bem, isto: entrando cada vez em mais pormenores, contou-lhe a
história dos Brunner e do relógio, sem disfarçar seu orgulho. Isso era belo, disse
ele.


Já ela não teve palavras para especificar o horror que a história lhe causou.
Primeiro, sua vaidade; depois, sua falta de pudor em falar de sentimentos
humanos; era uma blasfêmia; ninguém no mundo devia contar um caso para
provar que amava sua espécie. Entretanto quando ele contou o dele – como o
velho tinha se posto de pé para fazer seu discurso – ela quase foi às lágrimas; ah,
se algum dia alguém lhe tivesse falado assim! Mas aí de novo ela sentiu que fora
justamente isso que condenara para sempre a humanidade; nunca eles iriam
mais longe do que deixar-se comover por cenas com relógios; os Brunner
fazendo discursos para os Prickett Ellis, e esses sempre dizendo que amavam sua
espécie; seriam sempre preguiçosos, transigentes, temerosos diante da beleza.
Daí surgiam revoluções; da preguiça e do medo e desse amor por cenas
impressionáveis. Ainda assim esse homem teve prazer com seus Brunner; e ela
estava condenada a sofrer eternamente por causa de suas pobres mulheres
impedidas de entrar nas praças. Sentavam-se assim em silêncio. Ambos muito
infelizes. Pois Prickett Ellis não se aliviou nem um pouco com o que tinha dito;
em vez de arrancar o espinho dela, enfiara-o ainda mais para o fundo; sua
felicidade da manhã fora arruinada. Miss O’Keefe estava confusa e aborrecida;
estava turva, e não clara.
“Temo ser uma dessas pessoas muito comuns”, disse ele, levantando-se,
“que amam sua espécie”.
Ao que Miss O’Keefe quase gritou: “Eu também”.
E assim odiando-se, odiando a casa cheia de gente que lhes proporcionara
essa noite desilusiva e dolorosa, esses dois amantes de sua espécie se levantaram
e, sem uma palavra, se despediram para sempre.

MOMENTOS DE SER:
“PINOS DE TELHA NÃO TÊM PONTAS”

“Pinos de telha não têm pontas – você não nota isso sempre?”, disse Miss Cray e,
virando-se pelo meio quando a rosa caiu do vestido de Fanny Wilmot, que por
sua vez se dobrou, com os ouvidos cheios de música, para procurar o pino no
chão.
Tais palavras, que Miss Cray e disse ao tocar o último acorde de uma fuga
de Bach, deram-lhe um choque extraordinário. Então Miss Cray e ia de fato ao
Telhador comprar pinos?, perguntou-se Fanny Wilmot, paralisada um momento.
Pois então ficava lá no balcão, como qualquer um, esperando, e lhe davam
moedas embrulhadas na conta, moedas que ela fazia deslizar para a bolsa da
qual, uma hora mais tarde, já em pé ao toucador tirava os pinos? Que
necessidade tinha de pinos, se em vez de se vestir se encasulava, como um
besouro compactado na couraça, de azul no inverno e verde no verão? Que
necessidade tinha ela de pinos – Julia Cray e –, que vivia, ao que tudo indicava, no
mundo frio e vítreo das fugas de Bach, tocando para si o que lhe dava prazer e só
consentindo em aceitar um ou dois alunos do conservatório de música da Archer
Street (assim dissera a diretora, Miss Kingston) por especial deferência a ela, que
nutria “a maior admiração possível” por Miss Cray e. Miss Cray e ficou em maus
lençóis, temia Miss Kingston, com a morte do irmão. Oh, eles tinham coisas tão
lindas, quando moravam em Salisbury e o irmão, Julius, era então, decerto, um
homem muito conhecido: um famoso arqueólogo. Foi um grande privilégio
hospedar-se com eles, disse Miss Kingston (“Minha família os conheceu desde
sempre – era tradicional em Salisbury ”, Miss Kingston disse), mas um pouco
assustador para uma criança; todo cuidado era pouco para não bater com a porta
nem entrar no quarto às carreiras. Miss Kingston, que fez breves descrições de
caráter como essa no primeiro dia de aula, enquanto recebia cheques e assinava
recibos, deu aqui um sorriso. Sim, em menina ela era mesmo levada; tinha
corrido pela casa, pondo os vidros verdes romanos e todas aquelas coisas para
pular nas vitrines. Nenhum dos Cray es era casado. Os Cray es não estavam
acostumados com crianças. Criavam gatos. Os gatos, percebia-se, sabiam tanto
sobre as urnas romanas e outras coisas como qualquer um.
“Muito mais do que eu!”, disse alegremente Miss Kingston, assinando seu
nome na estampilha com a caligrafia cheia, impetuosa e bem-disposta que tinha,
pois sempre havia sido prática.


Talvez então foi ao acaso, pensou Fanny Wilmot, procurando o pino, que
Miss Cray e disse aquela frase, “Pinos de telha não têm pontas”. Nenhum dos
Cray es tinha se casado. Ela não entendia nada de pinos – nada mesmo. Mas
queria quebrar o encantamento que se abatera sobre a casa; quebrar a placa de
vidro que os separava das demais pessoas. Quando Polly Kingston, aquela
garotinha espevitada, fez os vasos romanos balançarem ao bater com a porta,
Julius, vendo que não havia estragos (sua primeira reação instintiva),
acompanhou-a com os olhos, pois a vitrine ficava bem na janela, enquanto Polly
escapulia de casa pelos campos afora; olhou-a com o mesmo olhar que às vezes
sua irmã também tinha, prolongado, desejoso.
“Estrelas, lua, sol”, parecia dizer aquele olhar, “margarida na grama, fogos,
geada na vidraça, meu coração vai logo atrás de você. Mas você”, parecia
acrescentar sempre, “você escapa, você passa e some”. E cobria
simultaneamente a intensidade desses dois estados de espírito com um “Eu não
consigo lhe alcançar – não consigo chegar até você”, dito sôfrega e
frustradamente. Desapareciam as estrelas, e a criança também.
Era esse o encantamento, era essa a superfície de vidro que Miss Cray e
queria quebrar quando mostrava, após tocar Bach com tal mestria para brindar a
uma aluna favorita (Fanny Wilmot sabia ser a aluna favorita de Miss Cray e), que
ela sentia o mesmo que os outros em relação aos pinos. Os pinos de telha não
tinham pontas.


Sim, o “famoso arqueólogo” também era assim. “O famoso arqueólogo” –
ao dizer isso assinando cheques, certificando-se do dia do mês, falando com tal
vivacidade e franqueza, Miss Kingston punha sua voz num tom indescritível, que
dava a entender alguma coisa estranha, alguma coisa excêntrica, em Julius
Cray e. A mesmíssima singularidade que talvez houvesse em Julia também. Eu
podia até jurar, pensou Fanny Wilmot, enquanto procurava o tal pino, que em
festas, em cultos (o pai de Miss Kingston era pastor), ela captou partes de algum
boato, ou quem sabe apenas um sorriso, um certo tom, ao ser mencionado o
nome dele, e que isso a deixou com “uma desconfiança” sobre Julius Cray e.
Desnecessário dizer que ela nunca falara disso a ninguém. Provavelmente mal
sabia o que queria dizer com isso. Porém, sempre que se referia a Julius, ou que
ouvia menções a ele, era esta a primeira ideia que lhe vinha à cabeça: havia
alguma coisa esquisita sobre Julius Craye.


Era assim que Julia olhava também, sentada no banquinho de música,
virada pelo meio, sorrindo. Ei-la no campo, na vidraça, no céu – a beleza; e eu
não consigo chegar até ela; não a posso ter – eu, parecia acrescentar, com seu
jeito ríspido, e tão característico, de ter a mão pronta a pegar, que a adoro com
tal paixão, que daria o mundo inteiro para possuí-la! E ela apanhou o cravo que
caíra no chão enquanto Fanny procurava o pino. Apanhou-o e voluptuosamente
amassou-o, sentiu Fanny, em suas mãos macias e de veias saltadas, cheias de
anéis da cor da água e com pérolas. A pressão de seus dedos parecia aumentar
na flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco,
franzido, imaculado. O que havia de estranho nela, e também em seu irmão, é
que essa atividade dos dedos, agarrando e esmagando, combinava-se a uma
frustração perpétua. Assim era ainda agora com o cravo. Ela o tinha nas mãos;
apertava-o; mas não chegava a possuí-lo, não o desfrutava de todo.
Nenhum dos Cray es se casou, recordou-se Fanny Wilmot. Tinha em mente
uma noite, quando a aula durou mais que de hábito e já estava escuro, em que
Julia havia dito: “Os homens servem para nos proteger, sem dúvida”, dando-lhe
aquele mesmo estranho sorriso, quando a ajudava, de pé, a amarrar a capa, o
que a tornava, como a flor, consciente até a ponta dos dedos de juventude e
brilho, mas, também como a flor, suspeitava Fanny, inibida.
“Oh, mas eu não quero proteção”, disse Fanny rindo e, quando Julia Cray e,
nela fixando seu extraordinário olhar, disse não estar assim tão certa disso, Fanny
decididamente corou sob a admiração que ela estampava nos olhos.
Os homens só serviam para isso, dissera ela. Foi então por essa razão,
perguntava-se Fanny, de olhos no chão, que ela nunca se casou? Afinal, não tinha
passado a vida toda em Salisbury. “De longe a melhor parte de Londres”,
comentara certa vez, “(mas estou falando de quinze ou vinte anos atrás) é
Kensington. A dez minutos dos jardins – como que em pleno campo. Podíamos
jantar ao ar livre de chinelos, sem pegar resfriado. Kensington – era então como
uma aldeia, sabe”, dissera ela.
Nisso se interrompeu, para denunciar acerbamente as correntes de ar nos
túneis do metrô.


“Os homens serviam para isso”, dissera ela, com uma espúria e aberrante
aspereza. Por acaso isso lançava alguma luz sobre o problema de ter ficado
solteira? Era possível imaginar cenas de todo tipo em sua juventude, quando ela,
com seus bondosos olhos azuis, o nariz firme e reto, as músicas ao piano e as
rosas que em casta paixão desabrochavam no peito de seu vestido de musselina,
tinha atraído primeiramente os rapazes para quem essas coisas, somadas às
xícaras de porcelana, aos candelabros de prata e às mesas de marchetaria (pois
os Craigs possuíam tais raridades), eram maravilhosas; rapazes não
suficientemente distintos; rapazes da cidade-catedral com ambições.
Primeiramente os atraíra e, depois, aos amigos dos seus irmãos de Oxford ou
Cambridge. Esses, que viriam no verão, levavam-na pelo rio a remo,
prosseguiam por carta a discussão sobre Browning e combinavam talvez, nas
raras ocasiões em que ela passava tempos em Londres, de lhe mostrar – os
jardins de Kensington?


“De longe a melhor parte de Londres – Kensington. Estou falando de quinze
ou vinte anos atrás”, ela dissera certa vez. “A dez minutos dos jardins – como que
em pleno campo.” Disso eu poderia extrair o que bem quisesse, pensou Fanny
Wilmot; fixar-me por exemplo em Mr. Sherman, o pintor, velho amigo dela; leválo
a bater em sua casa, com hora marcada, num dia ensolarado de junho; para
levá-la a tomar chá embaixo das árvores. (Encontravam-se também nas festas às
quais se ia de chinelos, saltitando e sem medo de pegar resfriado.) A tiaou outra
parente idosa ficaria esperando enquanto eles fossem olhar o Serpentine. Deram
mesmo uma olhada lá. Podem ter inclusive atravessado de barco o Serpentine, com
ele nos remos. Compararam-no ao Avon. Comparação que ela tomaria muito a sério,
porque dava importância às considerações sobre rios. Em parte angulosa, em parte
arqueada, não obstante graciosa, sentava-se no comando. No momento crítico,
pois ele havia decidido que devia falar agora – era sua única chance de estar a
sós com ela – já estava falando, com a cabeçavirada num ângulo ridículo, em seu
grande nervosismo, por cima do ombro – momento exato em que ela o interrompeu
com energia. Gritou que ele os levasse até a Ponte. Foi um momento de horror, de
desilusão, de revelação para os dois. Não a posso ter, não a consigo possuir,
pensava ela. E ele não entenderia por que então tinha vindo. Mas virou o barco,
batendo o remo com toda força na água. Apenas para rejeitá-lo? Levou-a de volta e
disse adeus.


A locação desta cena poderia variar à vontade, refletiu Fanny Wilmot.
(Onde tinha caído o tal do pino?) Tanto fazia ser Ravena – ou Edimburgo, onde
ela cuidara da casa para o irmão. Podiam variar a própria cena e o rapaz e a
exata maneira como tudo ocorreu; mas uma coisa era constante – sua recusa,
seu ar carrancudo, sua raiva de si mesma depois e seus raciocínios e o alívio –
sim, certamente seu imenso alívio. No dia seguinte talvez ela se levantasse às seis
horas para colocar sua capa e caminhar de Kensington até o rio. Sentia-se
agradecida por não haver sacrificado seu direito de ir olhar as coisas no melhor
momento – ou seja, antes que se levantem os outros. Ela, se quisesse, poderia ter
seu café na cama. Não havia sacrificado sua independência.
Sim, sorriu Fanny Wilmot, Julia não havia posto em risco seus hábitos.
Hábitos que permaneciam a salvo e iriam sofrer reveses, caso se casasse. “São
ogros”, disse ela ao cair de uma noite, meio sorrindo, quando outra aluna, jovem
recém-casada, de repente se lembrou de que tinha de encontrar seu marido e
saiu às carreiras.


“São ogros”, dissera ela, com um riso sinistro. Um ogro talvez interferisse
com o café na cama; com caminhadas matinais até o rio. O que teria acontecido
(o que mal se podia conceber) se ela tivesse tido filhos? Tomava surpreendentes
precauções contra friagem, fadiga, comida muito temperada, a comida errada,
correntes de ar, quartos quentes, viagens de metrô, pois nunca conseguia
determinar qual dessas era exatamente a causa das terríveis dores de cabeça que
transformavam sua vida num verdadeiro campo de batalha. Estava sempre
empenhada em ludibriar o inimigo, até lhe parecer que a própria perseguição
tinha lá algum interesse; ela acharia a vida um pouco monótona, se pudesse
derrotar de vez o inimigo. Tal como era, o esforço de guerra era perpétuo – de
um lado, o rouxinol ou a vista que lhe inspiravam paixão –, não era menos que
paixão, de fato, o que sentia por panoramas e pássaros; e de outro a trilha úmida
ou a lenta e horrível subida de uma ladeira íngreme que por certo não lhe faria
bem no dia seguinte, trazendo-lhe uma dor de cabeça. Quando, por conseguinte,
de tempos em tempos, ela reunia com acerto suas forças e empreendia uma
visita a Hampton Court, na semana em que os açafrões (essas flores tão
brilhantes eram as suas prediletas) estavam no máximo esplendor, obtinha uma
vitória. Era algo que durava; algo que importava para sempre. Punha a tarde em
questão no seu colar de dias memoráveis, que por não ser muito extenso a
tornava capaz de recordar-se de alguns; de tal vista, de tal cidade; de tatear, sentir
e saborear, suspirando, a qualidade que a tornava única.


“Estava tão bonito na sexta-feira passada”, disse ela, “que resolvi ir até lá”.
Saíra assim para Waterloo a fim de realizar sua façanha – visitar Hampton Court
– sozinha. De um modo natural, se bem que tolo, compadeciam-se dela por algo
pelo que ela própria nunca pedira compaixão (de hábito, era de fato reticente, só
falando de sua saúde como um guerreiro pode falar do adversário) – compadeciamse
dela por sempre fazer tudo sozinha. Seu irmão tinha morrido. Sua irmã, que
era asmática, achava bom para si o clima de Edimburgo. Para Julia, era muito
frio. Talvez também ela achasse as associações penosas, pois seu irmão, o famoso
arqueólogo, tinha morrido lá; e ela adorava aquele irmão. Vivia totalmente só numa
casinha perto de Brompton Road.


Fanny Wilmot, vendo o pino no tapete, apanhou-o. E olhou para Miss Cray e.
Era Miss Cray e assim tão solitária? Não, Miss Cray e era firme e bemaventuradamente,
ainda que só por um momento, uma mulher feliz. Fanny a
surpreendera num instante de êxtase. Sentava-se ao piano, virada para trás até o
meio, e mantinha o cravo erguido entre as mãos cruzadas no colo, tendo por trás
de si o abrupto quadrado da janela, sem cortinas e roxo no começo da noite,
intensamente roxo depois que o brilho das lâmpadas elétricas se esparziu sem
sombras pela despojada sala de música. Julia Cray e, sentando-se arqueada e
compacta a segurar sua flor, parecia emergir da noite londrina, que a envolvia
por trás como uma capa. E aquilo parecia ser, pela nudez e intensidade, a
efluência de seu espírito, algo que a rodeava e ela tinha feito, algo que era ela
mesma. Fanny olhou.


Por um momento tudo pareceu transparente ao olhar de Fanny Wilmot,
como se, olhando através de Miss Cray e, ela visse a própria fonte de sua vida a
jorrar em puras gotas de prata. Viu além dela, muito além, recuando cada vez
mais em seu passado. Viu os vasos verdes romanos em suas caixas de vidro;
ouviu os coristas jogando críquete; viu a tranquilidade de Julia ao descer para o
gramado pelos degraus em curva; viu-a servindo o chá, embaixo do pé de cedro;
meigamente encerrando as mãos do velho nas suas; viu-a de um lado para outro
pelos corredores da residência da antiga catedral com toalhas na mão para marcálas;
lamentando ao passar a banalidade da vida cotidiana; e envelhecendo
lentamente, desfazendo-se de certas roupas, quando o verão chegava, porque,
para se usar na sua idade, eram brilhantes demais; e cuidando da doença do pai;
e abrindo seu caminho de um modo cada vez mais decidido à medida que seu
desejo a impelia, fortificado, à sua meta solitária; viajando só de vez em quando;
calculando gastos, avaliando cada quantia que teria de sair de sua bolsa apertada
para pagar tal viagem, ou comprar um espelho velho; agarrando-se
obstinadamente, dissessem o que dissessem os outros, à escolha de seus próprios
prazeres. Ela viu Julia…
Ela viu Julia abrir os braços; viu-a abrasar-se; viu-a crepitar. Vinda da noite
ela ardeu como uma estrela branca e morta. Julia a beijou. Julia a possuiu.
“Pinos de telha não têm pontas”, disse Miss Cray e, rindo de um modo
singular e relaxando seus braços, enquanto Fanny Wilmot, com dedos trêmulos,
prendia a flor no seu seio.


A DAMA NO ESPELHO:
REFLEXO E REFLEXÃO

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se
devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime
horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho
que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da
profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho
italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma
nesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendia
entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.
Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa
na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas,
deitam para observar os animais mais tímidos – texugos, lontras, martinspescadores
– e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a
sala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento,
pétalas caindo – coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver
olhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira de
pedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro,
estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho,
pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicos
alusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantes
flamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões raiados de prata. E havia
também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba
impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas
a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo
em dois segundos juntos.


Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a
trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmo
estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho – aqui tudo
mudando e, lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro.
Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia
um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dos
que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho
as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.
Meia hora antes a dona da casa, Isabella Ty son, tinha descido pela trilha de
grama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pela
moldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, como
parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante e
folhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que se
enroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxas
e brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumado
áster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam como
lâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco se
sabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquer
mulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomada
realmente por ramalhete ou gavinha. Tais comparações não são apenas vãs e
superficiais – pior que isso, chegam até a ser cruéis por virem a se interpor
tremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver uma
verdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-a
depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella;
frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. No
tocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; que
comprara essa casa e com as próprias mãos juntara – não raro nos cantos mais
remotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais – os
tapetes, as cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dos
olhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela do
que a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos com
tanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitas
gavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maços
amarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa.
Pois outro fato – se eram fatos que se queria – é que Isabella conhecera muitas
pessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abrir
uma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitações sem conta, de
compromissos a manter, de exprobrações por o não ter feito, longas cartas de
intimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavras
finais de despedida – pois nenhum daqueles encontros e combinações de
encontros levara a nada – ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pela
indiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo de
experiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores são
trombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella,
sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros,
as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.
De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foram
violentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra que
eclipsou tudo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas de
mármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo.
No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado.
Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém,
depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seu
respeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las ao âmbito da experiência
comum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinha
trazido o correio.


Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípio
pingando luz e cor, não digeridas nem assimiladas. E era estranho então ver
como se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte do
quadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziam
investidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de mais
peso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, quer
isso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente um
punhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna
– sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella,
sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea,
as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabella
viria para os apanhar um a um, bem devagar, abri-los para ler com atenção,
palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, como
se ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos,
amarrar as cartas juntas e fechar a chave a gaveta do armário, em sua
determinação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.


Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida – mas
não conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto e
ocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeira
ferramenta de que se dispunha – a imaginação. Nesse exato momento, era
preciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava. Recusarse
a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasião produzia – por
jantares e visitas e conversas polidas. Era preciso pôr-se em sua pele, saber onde
lhe apertava o sapato. A se tomar literalmente a frase, seria fácil ver os sapatos
nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento. Eram muito
estreitos e compridos e à moda – feitos do mais macio e flexível couro. Como
tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar na ponta dos pés,
sob a alta cerca-viva na parte mais baixa do jardim, erguendo a tesoura que trazia
presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que
crescera demais. O sol lhe bateria em cheio no rosto, nos olhos; mas não, no
momento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressão
de seus olhos – seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podiase
ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olhar
para o céu. Ela estava pensando, talvez, que tinha de encomendar uma nova
proteção para os morangueiros; que tinha de mandar flores à viúva de Johnson;
que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesley em sua nova casa. Dessas
coisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava no
jantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar e
converter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para o
corpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. À menção dessas palavras
se tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinha
muitos amigos; viajava – comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia.
Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podar
ramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.
Então, com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete de
clematite, que caiu no chão.

 

Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luz
também, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura e
remorso enchiam-lhe a essa altura o espírito… Podar um ramo que crescera
demais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim e, ao
mesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, que
tudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrandose
a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinha
tratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra e
suavemente apodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficou
pensando. Sem formular qualquer ideia precisa – porque era uma dessas pessoas
cujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio –, via-se repleta
de ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam e
retrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas e
abrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala,
pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, e
ela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seus
armários. Falar de “abri-la à força” como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhe
qualquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seria
absurdo e ímpio. Era preciso imaginar – ei-la que aparecia no espelho. E isso
causava um sobressalto.


A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez.
Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando um
cravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-se
maior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cuja
mente se tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a
examinava – ajustando as características que havia descoberto naquele corpo
visível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta e
algo que cintilava em seu pescoço. Tão devagar ela vinha que nem parecia
desarranjar a própria imagem no espelho, mas tão só lhe acrescentar algum
elemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como se
lhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e a
mesa e a trilha de grama e os girassóis, que já se achavam à espera no espelho,
apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá estava
ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parou
sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz
que a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial e
dispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de
si caía – nuvens, vestido, cesta, diamante –, tudo que se havia chamado de
trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria
mulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava
completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos. Não se importava com
ninguém. Quanto às suas cartas, não eram todas senão contas. Via-se, nisso que
ela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e veiada, com seu nariz empinado
e estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.
Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.


LAPPIN E LAPINOVA
Eles se casaram. Chegou ao fim a marcha nupcial. Os pombos bateram asas.
Garotinhos com casacos de Eton jogaram arroz; no meio do caminho saracoteou
um fox terrier; e Ernest Thorburn conduziu sua noiva ao carro por entre o
pequeno e inquisitivo aglomerado de completos estranhos que sempre se forma
em Londres para desfrutar da felicidade ou infelicidade dos outros. Por certo ele
tinha boa aparência e ela aparentava ser tímida. Mais arroz foi jogado e o carro
partiu.


Isso foi na terça-feira. Hoje era sábado. Rosalind tinha de acostumar-se
ainda ao fato de agora ser Mrs. Ernest Thorburn. Talvez nunca se acostumasse ao
fato de ser senhora Ernest Fosse-o-que-fosse, pensava ela, sentada na janela
arcada do hotel que dava para o lago e as montanhas, esperando seu marido
descer para o café. Era difícil se acostumar a um nome como Ernest. Não, não
era o nome de sua preferência. Se pudesse, teria escolhido Timothy, Antony ou
Peter. Além do mais ele não tinha cara de Ernest. Tal nome sugeria o Albert
Memorial, móveis de mogno, gravuras em metal do príncipe consorte e família –
em suma, a sala de jantar da sogra dela em Porchester Terrace.
Mas aí vem ele. Graças a Deus ele não tinha cara de Ernest – não. Mas
então cara de quê teria? Com olhares de soslaio, ela pôde observá-lo. Bem,
assim, comendo torrada, parecia um coelho. Não que outra pessoa fosse ver
semelhança com uma criatura tão diminuta e tímida naquele rapagão musculoso
e guapo, de nariz reto, olhos azuis e boca bem talhada. Mas por isso é que era
mais divertido ainda. Quando comia, o nariz dele tremia um pouco. Tal e qual o
coelho de estimação que Roselind tinha. Observou-o com tão grande insistência,
o nariz que tremia, que acabou tendo de explicar, quando ele a surpreendeu
olhando-o, por que sorria.


“É porque você parece um coelho, Ernest”, disse ela. “Um coelho
selvagem”, acrescentou, olhando para ele. “Um coelho caçador; o rei dos
coelhos; um coelho que faz leis para todos os demais.”
Ernest não ligou de ser tomado por um coelho dessa espécie e, como ela se
divertia tanto vendo o nariz dele tremer – sem que ele soubesse até então que seu
nariz tremia –, ele o fez tremer de propósito. E ela riu a mais não poder; e ele riu
também, de modo que as moças solteiras e o pescador e o garçom suíço de
jaleco preto ensebado, todos adivinharam certo; eles eram muito felizes. Mas
quanto tempo dura essa felicidade? perguntavam-se eles próprios; e cada qual
respondia de acordo com suas próprias circunstâncias.
Na hora do almoço, sentada numa moita de urze à beira do lago, “Quer
alface, coelho?”, disse Rosalind, exibindo a verdura que havia sido levada para
comer com os ovos cozidos. “Vem pegar na minha mão, vem”, acrescentou, e
ele se esticou todo, deu dentadinhas na alface e fez seu nariz tremer.
“Coelho bonzinho, coelho bonito”, dizia ela, alisando-o como costumava
alisar seu bicho domesticado em casa. Mas era um absurdo. Ele, fosse lá o que
fosse, não era um coelho domesticado. Ela então tentou chamá-lo em francês:
“Lapin”. Mas ele, fosse lá o que fosse, também não era um coelho francês. Era
pura e simplesmente inglês – nascido em Porchester Terrace, educado em
Rugby ; atualmente funcionário do serviço público de Sua Majestade. Assim, a
seguir, ela tentou “Coelhinho”; mas foi ainda pior. “Coelhinho” era alguém
gordinho e fofo e gozado; ele era magro e duro e sério. Apesar disso, seu nariz
tremia. “Lappin”, exclamou ela de repente; e deu um gritinho como se tivesse
encontrado a palavra exata que vinha procurando.


“Lappin, Lappin, rei Lappin”, repetia. Parecia encaixar-se nele à perfeição;
ele não era Ernest, era o rei Lappin. Por quê? Ela não sabia.
Quando não havia nada de novo sobre o que conversar, em seus longos
passeios solitários – e chovia, como todos lhes tinham dito que ia chover; ou
quando eles sentavam de noitinha à lareira, pois fazia frio, tendo as moças
solteiras e o pescador se retirado e só vindo o garçom se se tocasse o sino, ela
deixava sua imaginação brincar com a história da tribo de Lappin. Em suas mãos
– ela estava costurando; ele estava lendo – seus integrantes se tornavam muito
reais, muito vívidos, muito engraçados. Ernest largou seu jornal para ajudá-la.
Havia coelhos pretos e coelhos vermelhos; havia amigos e inimigos. Havia a
mata na qual eles viviam e as campinas em volta e o charco. Acima de tudo
havia o rei Lappin, que, longe de apenas ter um tique – o de tremer o nariz –,
tornou-se com a passagem do tempo um animal de grande reputação; Rosalind
sempre encontrava novas qualidades nele. Mas acima de tudo era um grande
caçador.


“E o que foi”, perguntou Rosalind, no último dia da lua de mel, “que o rei
fez hoje?”.
Na realidade eles dois, o dia todo, tinham subido morros; e ela ficara com
uma bolha no calcanhar; mas não era isso que tinha em mente.
“Hoje”, disse Ernest, fazendo o nariz tremer enquanto abria nos dentes a
ponta de seu charuto, “ele caçou uma lebre”. Fez uma pausa; riscou um fósforo e
seu nariz tremeu de novo.
“Uma lebre mulher”, acrescentou.
“Uma lebre branca!”, exclamou Rosalind, como se já contasse com isso.
“Uma lebre um tanto pequena; cinza-prateada; de olhos grandes e brilhantes?”
“Sim”, disse Ernest, olhando para ela como ela o olhava, “um bichinho
assim; de olhos saltando para fora das órbitas e com as duas patinhas dianteiras
balançando no ar”. Era exatamente assim que ela sentava, com sua peça de
costura balançando nas mãos; e seus olhos, tão grandes e brilhantes, eram por
certo algo proeminentes.
“Ah, Lapinova”, murmurou Rosalind.


“É assim que ela se chama?”, disse Ernest, “a Rosalind real?”. Sentindo-se
profundamente apaixonado, não parava de olhar para ela.
“Sim; é assim que ela se chama”, disse Rosalind. “Lapinova.” E antes de
irem para a cama, nessa noite, ficou tudo resolvido. Ele era o rei Lappin; ela, a
rainha Lapinova. Eram o completo contrário um do outro; ele, decidido e
audacioso; ela, desconfiada e insegura. Ele governava o atarefado mundo dos
coelhos; já o mundo dela era um lugar desolado, misterioso, que ela percorria
pincipalmente ao luar. De todo modo, seus territórios se tocavam; eram rei e
rainha.
Ao voltarem de sua lua de mel, eles assim já possuíam um mundo
particular, habitado apenas, com a exceção da lebre branca, por coelhos.
Ninguém adivinhava a existência desse lugar, o que decerto tornava a coisa ainda
mais divertida. Era algo que os fazia sentir-se, mais ainda do que a maioria dos
jovens casais, em aliança contra o restante do mundo. Não raro trocavam
irônicos olhares quando as pessoas falavam de coelhos e matas e armadilhas e
caça. Trocavam-se piscadelas furtivas pela mesa quando tia Mary dizia que era
incapaz de aguentar ver uma lebre num prato – parecia tanto um bebê: ou
quando John, o irmão brincalhão de Ernest, disse-lhes a que preços os coelhos
chegavam, nesse outono, com pele e tudo, em Wiltshire. Os dois, às vezes, se
necessitassem de um guarda-caça, de um caçador ilegal ou de um Senhor do
Solar, divertiam-se distribuindo os papéis entre seus amigos. A mãe de Ernest,
Mrs. Reginald Thorburn, por exemplo, encaixava-se à perfeição no papel de
Proprietária Rural. Mas tudo isso era segredo – e isso é que era bom. Ninguém a
não ser eles sabia que esse mundo existia.


Sem esse mundo, como, perguntava-se Rosalind, teria ela sobrevivido
àquele inverno? Houve, por exemplo, a festa de bodas de ouro, quando todos os
Thorburn se reuniram em Porchester Terrace para celebrar o quinquagésimo
aniversário daquela união tão abençoada – não havia ela gerado Ernest
Thorburn? e tão fecunda – não gerou de quebra nove irmãos e irmãs, muitos
deles casados e igualmente fecundos? Ela temia aquela festa. No entanto foi
inevitável. Já quando ia escada acima possuiu-a o amargo sentimento de ser filha
única e além do mais órfã; uma simples gota entre todos aqueles Thorburn
reunidos na grande sala de visitas onde brilhavam o papel de parede acetinado e
os ilustres retratos da família. Os Thorburn vivos pareciam-se muito com os
retratados; só que, em vez de lábios pintados, tinham lábios reais; dos quais saíam
casos gozados; casos sobre as horas de estudo, sobre como tinham puxado a
cadeira para a governanta cair; casos sobre sapos, sobre alguém ter posto um
sapo entre os virgens lençóis de moças solteiras. Quanto a ela, nunca sequer
arrumou a cama direito.

 

Segurando seu presente na mão, avançou para sua sogra, suntuosa num cetim amarelo; e para seu sogro, decorado com um rico cravo amarelo. Ao seu redor espalhavam-se tributos de ouro sobre mesas e
cadeiras; uns aninhando-se em lã de algodão; outros esgalhando-se
resplandecentes – candelabros; caixas de charutos; correntes; todos com a
declaração do ourives gravada de que era ouro do bom, certificado, autêntico.
Mas o presente dela era apenas uma caixinha de pechisbeque com um crivo; um
antigo espalhador de areia, uma relíquia do século XVIII, usado para aspergir
areia sobre tinta molhada. Um presente, pensava ela, meio sem sentido – numa
época de papel mata-borrão; e, ao oferecê-lo, viu pela frente a letra negra e
grossa na qual sua sogra tinha expressado a esperança, quando eles se
comprometeram, de que “Meu filho a fará feliz”. Não, feliz ela não era. Nem
um pouco. Olhou para Ernest, reto que nem uma vareta, com um nariz igual a
todos os narizes dos retratos da família; um nariz que não tremia nunca.
Depois desceram para o jantar. Ela ficou meio escondida pelos crisântemos
cujas pétalas vermelhas e amarelas se apertavam caindo em grandes cachos.
Era tudo de ouro. Um cartão debruado a ouro com iniciais entrelaçadas em ouro
declinava a lista das delícias que, uma após outra, seriam postas diante deles.
Num prato de claro fluido de ouro ela mergulhou a colher. E até a bruma branca
e em bruto de fora foi transformada por lâmpadas num emaranhado dourado
que se refletia nas beiradas dos pratos e dava aos abacaxis uma casca áspera e
áurea. Somente ela, em seu vestido branco de casamento, olhando em frente
com seus olhos proeminentes, parecia insolúvel como um pingente de gelo.
Ao prolongar-se o jantar, contudo, o calor se propagou pela sala. Formavamse
gotas de suor na testa dos homens. Seu pingente, ela sentiu, estava virando água.
Ela estava derretendo; dispersava-se; dissolvia-se em nada; e ia desmaiar dentro em
pouco. Então, por entre a compressão na cabeça e a algazarra em seus ouvidos,
ela ouviu a voz de uma mulher que exclamava: “Mas é assim que eles
procriam!”.


Os Thorburn – sim; é assim que eles procriam, repetiu ela; olhando para
todos os rostos redondos e vermelhos que, na vertigem que a dominava,
pareciam duplicar-se; e magnificar-se na neblina dourada que os aureolava. “É
assim que eles procriam.” A essa altura John berrava:
“São uma praga!… É bala neles! É esmagá-los no tacão da bota! É a única
maneira de enfrentar esses bichos… os coelhos!”.


A essa palavra, a essa palavra mágica, ela reviveu. Espiando por entre os
crisântemos, viu o nariz de Ernest tremer, enrugar-se um pouco e voltar a tremer
sucessivas vezes. Nisso uma misteriosa catástrofe se abateu sobre os Thorburn. A
mesa dourada tornou-se uma charneca com o tojo em plena floração; a
algaravia das vozes reduziu-se a um ressoar de riso de cotovia pelo céu. Era um
céu azul – nuvens passavam lentamente. E eles, os Thorburn – todos eles
mudaram. Ela olhou para o sogro, homenzinho furtivo de bigode pintado. Seu
fraco era colecionar coisas – selos, caixinhas esmaltadas, bugigangas de toucador
do século XVIII que ele escondia da esposa nas gavetas do seu gabinete. Nesse
instante ela o viu como ele era – um caçador ilegal, que se esgueirava, com os
faisões e perdizes que furtou a lhe estufar o capote, para às escondidas jogá-los
num caldeirão de três pernas em seu enfumaçado casebre. Era este o seu sogro
verdadeiro – um caçador em terra alheia. E Celia, a filha solteira, que vivia se
intrometendo nos segredinhos dos outros, nas coisas que queriam manter ocultas
– ela era um furão branco de olhos avermelhados, com restos de terra no focinho
provindos de seu horrível fuçar e bisbilhotar subterrâneo. Apoiada em ombros de
homens, numa rede, e enfiada por um buraco abaixo – era uma vida lamentável
– a de Celia; não por culpa dela. Foi assim que ela viu Celia. Depois olhou para
sua sogra – que eles chamavam de Proprietária Rural. Corada, grosseira,
arrogante – sim, tudo isso ela era, ali em pé retribuindo agradecimentos, mas
agora que Rosalind – isto é, Lapinova – a via, via por trás dela a mansão familiar
decadente, o emboço descascando nas paredes, e a ouvia dar graças, com um
soluço na voz, a seus filhos (que a detestavam) por um mundo que já havia
deixado de existir. Houve um súbito silêncio. Todos se postaram com seus copos
erguidos; todos beberam; depois tudo se acabou.
“Oh, rei Lappin!”, gritou ela, quando já iam para casa, juntos, no nevoeiro,
“se o seu nariz não tivesse tremido bem naquele momento, eu cairia na
armadilha!”
“Mas você está salva!”, disse o rei Lappin, apertando-lhe a patinha.
“Totalmente”, respondeu ela.
E assim de novo eles atravessaram o parque, rei e rainha dos brejais, da
neblina e da charneca perfumada de tojo.


E assim se passou o tempo; um ano; dois anos. E numa noite de inverno, que
por coincidência caiu no aniversário da festa de bodas de ouro – mas Mrs.
Reginald Thorburn estava morta; a casa, para alugar; e havia apenas um zelador
morando lá –, Ernest, vindo do escritório, chegou em casa. Era uma casinha
agradável, a deles; a metade de uma casa por cima da loja de um seleiro em
South Kensington, não muito longe da estação do metrô. Fazia frio, com neblina
no ar, e Rosalind estava sentada à lareira, costurando.
“Sabe o que aconteceu comigo hoje?”, começou ela, tão logo ele se instalou
ao calor esticando as pernas. “Eu estava atravessando o riacho, quando…”
“Que riacho?”, interrompeu Ernest.


“O riacho do fundo, onde nossa mata se encontra com a mata negra”,
explicou ela.
Ernest parecia ter ficado perplexo.
“De que diabo você está falando?”, perguntou.
“Ernest, meu querido!”, ela gritou consternada. “Rei Lappin”, acrescentou,
balançando à luz do fogo suas patinhas dianteiras. Mas o nariz dele não tremeu. E
as mãos dela – voltando a ser mãos – agarraram-se ao pano que ela segurava;
seus olhos quase saltaram da cabeça. Ele levou ao menos cinco minutos para
mudar, para passar de Ernest Thorburn a rei Lappin; e ela, enquanto esperava,
sentia um peso na nuca, como se houvesse alguém a ponto de lhe torcer o
pescoço. Finalmente ele virou o rei Lappin; seu nariz tremeu; e eles passaram a
noite, como de hábito, pervagando pelas matas.


Ela porém não dormiu bem. Acordou no meio da noite, sentindo que
alguma coisa estranha lhe tinha acontecido. Estava enrijecida e fria. Acabou
acendendo a luz e, quando olhou para Ernest a seu lado, ele dormia a sono solto,
roncando. Mas, muito embora roncasse, seu nariz se mantinha completamente
imóvel. Dava aliás a impressão de nunca ter se mexido. Seria possível que aquele
fosse realmente o Ernest; e que ela realmente fosse casada com um Ernest? Surgiulhe
pela frente uma visão da sala de jantar de sua sogra; e lá sentavam-se eles, ela e
Ernest, envelhecidos, por baixo das gravuras, diante do aparador… Era o dia de
suas bodas de ouro. E ela não conseguia aguentar.
“Rei Lappin, rei Lappin!”, sussurrou, e por um momento o nariz dele
pareceu tremer por moto próprio. Mas ele mesmo continuava dormindo.
“Acorde, Lappin, acorde!”, gritou ela.


Ernest acordou; e, ao vê-la sentada assim, tão tensa e reta a seu lado,
perguntou:
“Que foi que houve?”.
“Pensei que meu coelho tinha morrido!”, choramingou ela. Ernest se
aborreceu.
“Não diga uma bobagem dessas, Rosalind”, disse ele. “Deite-se e volte a
dormir.”
E virou de costas. Mais um momento e já estava dormindo fundo e
roncando.
Ela porém não conseguia dormir. Enroscava-se em seu lado da cama como
uma lebre em sua forma. Tinha apagado a luz, mas a lâmpada da rua clareava
ligeiramente o teto, sobre o qual as árvores de fora compunham uma trama
rendada, como se houvesse nele um arvoredo sombrio pelo qual ela vagava,
entrando e saindo, dando voltas e mais voltas, desorientando-se, caçando e sendo
caçada, ouvindo as trombetas e os latidos dos cães; fugindo, escapando… até a
empregada abrir as cortinas e lhes trazer o chá da manhã.


No dia seguinte ela não foi capaz de fixar-se em nada. Parecia ter perdido
uma coisa. Sentia-se como se seu corpo tivesse encolhido; como se, além de
menor, ele estivesse duro e preto. Suas juntas também se mostravam rígidas e,
ao olhar-se no espelho, o que ela fez várias vezes ao andar pelo apartamento,
seus olhos davam a impressão de estar saindo do rosto, como passas que saltam
da superfície de um bolo. Também os cômodos pareciam ter encolhido. Grandes
peças do mobiliário assumiam relevo em ângulos inesperados, e ela deu consigo
a bater de encontro aos móveis. Afinal pôs um chapéu na cabeça e saiu. Foi
caminhando ao longo de Cromwell Road; e cada sala por que passava, e na qual
dava uma espiada, parecia ser uma sala de jantar onde as pessoas sentavam-se
comendo sob gravuras em metal, com cortinas rendadas, amarelas e grossas, e
aparadores de mogno. Finalmente chegou ao Museu de História Natural; gostava
dali, quando criança. Mas a primeira coisa que ela viu, assim que entrou, foi uma
lebre empalhada, de pé sobre neve falsa e com olhos de vidro cor-de-rosa. Um
tremor a percorreu de alto a baixo. Ao cair o crepúsculo talvez melhorasse. Ela
foi para casa e sentou-se à lareira, sem acender a luz, e tentou imaginar que
estava sozinha num matagal; que um riacho corria por ali; e que além do riacho
havia a mata escura. Ela porém só ia até o riacho. Finalmente acocorou-se no
capim molhado da margem, e se agachou na cadeira na qual estava sentada,
com as mãos vazias balançando e os olhos, como se fossem mesmo de vidro,
vidrados na luz do fogo. Fez-se então o barulho de uma arma engatilhada…
Como se houvesse levado um tiro, ela tremeu. Era apenas Ernest, virando sua
chave na porta. Ela esperou, tremendo ainda. Ele entrou e acendeu a luz. Lá
estava de pé, alto, bonito, esfregando as mãos vermelhas de frio.
“Sentada no escuro?”, disse.


“Oh, Ernest, Ernest!”, exclamou ela, levantando-se de sua cadeira.
“Bem, o que foi dessa vez?”, perguntou ele com aspereza, esquentando as
mãos no fogo.
“É Lapinova…”, balbuciou ela, fitando-o tumultuosamente com seus
grandes olhos sobressaltados. “Ela se foi, Ernest. Eu a perdi!”
Ernest franziu as sobrancelhas. E apertou bem os lábios. “Oh, então foi
isso?”, disse ele, sorrindo de um modo algo implacável para sua esposa. Ficou ali,
em pé, calado, por dez segundos; e ela esperou, sentindo mãos a apertarem seu
pescoço por trás.
“Pois é”, disse ele enfim. “Pobre Lapinova…” No espelho em cima da
lareira ele endireitou a gravata.
“Caiu numa armadilha”, disse ele, “morreu”, e sentou-se para ler seu
jornal.E esse foi o fim daquele casamento.


O HOLOFOTE
A mansão do conde do século XVIII foi transformada no século XX num clube.
E era agradável, depois de jantar no salão com pilares e candelabros sob uma luz
ofuscante, sair para a sacada que dava para o parque. As árvores estavam
cobertas de folhas e, se houvesse lua, poder-se-ia enxergar os cocares das
castanheiras, tingidos de creme e cor-de-rosa. Contudo era uma noite sem lua;
muito quente, depois de um belo dia de verão.
Os convidados de Mr. e Mrs. Ivimey tinham ido fumar e tomar café na
sacada. Como que para poupá-los à obrigação de conversar, para distraí-los sem
nenhum esforço da parte deles, feixes de luz giravam pelo céu. Era tempo de
paz; mas a força aérea fazia seus exercícios; procurando no céu um avião
inimigo. Depois de se deter num ponto suspeito para esquadrinhá-lo, a luz voltava
a rodar, como as pás de um moinho, ou então como as antenas de algum
prodigioso inseto, e revelava aqui uma cadavérica fachada de pedra; acolá uma
castanheira coroada de flores; de repente a luz bateu na sacada e, por um
segundo, um disco brilhou intensamente – talvez um pequeno espelho na bolsinha
de mão de uma senhora.


“Olhem”, exclamou Mrs. Ivimey.
A luz passou. Eles ficaram novamente no escuro.
“Ninguém adivinha o que isso me fez ver!” Naturalmente, eles
adivinharam.
“Não, não, não”, protestou ela. Ninguém podia adivinhar; só ela sabia; só ela
era capaz de saber, porque ela era a bisneta do próprio homem. Foi ele quem lhe
contou a história. Que história? Bem, se eles quisessem, ela tentaria contá-la.
Ainda havia tempo antes da peça.


“Mas por onde eu começo?”, ponderou. “Pelo ano de 1820?… Deve ter sido
por aí a época da infância do meu bisavô. Eu mesma já não sou mais tão
jovem”, não, mas mantinha-se bonita e bem conservada, “e ele já era muito
idoso em meus tempos de menina – quando me contou a história. Um velho, sim,
e muito bonito”, explicou ela, “de basta cabeleira branca e olhos azuis. Deve ter
sido um garoto lindo. Mas estranho… O que era apenas natural – vendo-se como
eles viviam. O nome era Comber. Tinham decaído de nível. Depois de serem
fazendeiros; de terem tido terras no Yorkshire. Mas, quando ele era garoto, só
restava a torre. A casa era o mesmo que nada, uma simples casinhola de fazenda
no meio dos campos. Demos uma passada por lá há uns dez anos. Tivemos de
deixar o carro e atravessar os campos a pé. Não há estrada até a casa, que fica
isolada, com capim crescendo pelo portão acima… havia umas galinhas
ciscando, que entravam e saíam dos cômodos. Tudo na mais completa ruína.
Lembro que da torre caiu subitamente uma pedra”. E ela fez uma pausa. “Era lá
que eles viviam”, prosseguiu, “o velho, a mulher e o menino. Ela não era mulher
dele, nem a mãe do menino. Era uma simples ajudante da fazenda, uma garota
que o velho levou para viver com ele quando sua esposa morreu. Outra razão
talvez por que ninguém os visitava – por que a casa toda estava que era pura
ruína. Lembro porém de um brasão por cima da porta; e de livros, livros velhos,
mofados. Foi nos livros, sozinho, que ele aprendeu tudo que sabia. Lia muito, lia
sem parar, ele me disse, livros antigos, livros de cujas páginas se desdobravam
mapas. Arrastou-os para o alto da torre – a corda ainda está por lá, como os
degraus quebrados. Ainda há uma cadeira à janela, sem fundo; a janela aberta
despencando, as vidraças quebradas e uma vista quilométrica pelos matagais
afora”.


Ela se interrompeu, como se estivesse na torre olhando pela janela que
despencava aberta.
“Mas não conseguimos”, disse, “encontrar o telescópio”. Na sala de jantar
por trás deles o barulho de pratos se tornou mais forte. Mas Mrs. Ivimey na
sacada parecia intrigada, porque não conseguia achar o telescópio.
“Por que um telescópio?”, perguntou-lhe alguém.
“Por quê? Porque, se não tivesse havido um telescópio”, ela riu, “eu não
estaria sentada aqui agora!”.
E certamente ela estava sentada ali agora, uma bem conservada mulher de
meia-idade com alguma coisa azul nos ombros.
“Deve ter sido lá”, retomou, “porque ele me disse que todas as noites,
quando os mais velhos iam para a cama, ele se sentava à janela, olhando pelo
telescópio as estrelas. Júpiter, Aldebarã, Cassiopeia”. E ela estendeu a mão para
as estrelas que estavam começando a despontar sobre as árvores. Ficava escuro.
E o holofote parecia mais brilhante ao varrer o céu, parando aqui e ali para
também se fixar nas estrelas.


“Lá estavam elas”, prosseguiu, “as estrelas. E ele, o meu bisavô, o garoto –
se perguntou: ‘O que elas são? E por que são? E quem sou eu?’ como nos
perguntamos, estando a sós, sem ninguém com quem conversar, quando olhamos
para as estrelas”.
Ela se calou. E todos olharam para as estrelas que surgiam na escuridão por
cima das árvores. Estrelas que pareciam bem permanentes, bem imutáveis. Os
barulhos de Londres abafaram-se ao longe. Cem anos não pareciam ser nada.
Eles sentiram a presença do garoto olhando para as estrelas com eles. Sentiramse
na torre a seu lado, à procura de estrelas por sobre os matagais.
Uma voz então disse por trás deles:
“Certo, sim. Sexta-feira”.
Todos se viraram, se mexeram, sentindo-se cair de regresso na sacada.
“‘Certo, sim – sexta-feira…’ Ah, mas não havia ninguém para dizer isso a
ele”, murmurou ela. O casal se levantou para andar.


“Ele estava sozinho”, retomou ela. “Era um belo dia de verão. Um dia de
junho. Um desses dias perfeitos de verão, quando tudo parece manter-se imóvel
no calor. Mas havia galinhas ciscando pelo terreiro; o velho cavalo esperneando
no estábulo; o homem velho cochilando sobre seus óculos. A mulher areando
baldes no tanque. Talvez tenha caído uma pedra da torre. Parecia que o dia não
acabaria nunca. E ele não tinha com quem conversar – nada em absoluto para
fazer. Subiu pois para sua Torre. O mundo todo estendeu-se à sua frente. Os
matagais subindo e baixando; o céu se encontrando com os matagais; verde e
azul, verde e azul, para sempre e sempre.”
À meia-luz, podiam ver que Mrs. Ivimey já se debruçava à sacada, com o
queixo apoiado em suas mãos, como se do topo de uma torre ela olhasse os
matagais por cima.
“Nada, só mato e céu, mato e céu para sempre e sempre”, murmurou ela.
Depois fez um movimento, como se endireitasse um objeto no lugar.
“E com o que é que a terra parecia através do telescópio?”, perguntou.
Fez outro movimento bem rápido, como se estivesse rodando alguma coisa
nos dedos.


“Focalizou-o”, disse ela. “Focalizou-o na terra. Na massa escura de um
arvoredo no horizonte. Focalizou-o de modo a poder ver… cada árvore… cada
árvore em separado… e os pássaros… subindo e baixando… e um fiapo de
fumaça… lá… no meio das árvores… E depois… mais baixo… mais baixo…
(ela abaixou os olhos)… havia uma casa… uma casa no meio das árvores… uma
casa de fazenda… toda de tijolos à mostra… e as tinas de ambos os lados da
porta… com flores cor-de-rosa e azuis, talvez hortênsias…” Ela fez uma pausa…
“E então saiu da casa uma garota… usando uma coisa azul na cabeça… e lá
ficou… alimentando aves… pombos… que esvoaçavam ao seu redor… E aí…
vejam… Um homem… Um homem! Que veio vindo do canto. Que a pegou em
seus braços! E eles se beijaram… eles se beijaram!”
Mrs. Ivimey abriu e fechou seus próprios braços como se estivesse ela
mesma beijando alguém.
“Era a primeira vez que ele via um homem beijar uma mulher – no seu
telescópio – a quilômetros dali pelos matagais afora!”
Ela empurrou de si alguma coisa – presumivelmente o telescópio. E sentouse
reta.
“Assim correu escada abaixo. Correu pelos campos. Correu por trilhas, pela
estrada principal, em arvoredos. Correu quilômetros e mais quilômetros e, justo
quando as estrelas surgiam sobre as árvores, alcançou a casa… coberto de
poeira… banhado em suor…”
Ela parou, como se o visse.
“E aí, e aí… o que foi que ele fez? O que foi que ele disse? E a garota…”,
insistiram com ela.


Um raio de luz caiu sobre Mrs. Ivimey, como se alguém tivesse focalizado
nela as lentes de um telescópio. (Era a força aérea, caçando aviação inimiga.)
Ela tinha se levantado. Tinha uma coisa azul na cabeça. Tinha erguido sua mão,
como se à porta de uma casa, em pé, perplexa.
“Oh, a garota… Ela era mi…”, hesitou, como se estivesse a ponto de dizer
“eu mesma”. Mas se lembrou; e corrigiu-se. “A garota era minha bisavó”, disse.
Virou-se então para procurar seu casaco, que estava numa cadeira por trás.
“Mas diga-nos – o que aconteceu com o outro homem, o que veio vindo do
canto?”, perguntaram.
“Aquele homem? Aquele homem”, murmurou Mrs. Ivimey, dobrando-se
ao se atrapalhar com o casaco (o holofote tinha saído da sacada), “ele, creio eu,
sumiu”.
“A luz”, acrescentou, juntando suas coisas em volta, “cai somente aqui e
ali”.
O holofote tinha passado adiante. Estava focalizado agora na área ampla e
evidente do palácio de Buckingham. E era hora de eles irem ao teatro.


O LEGADO
“Para Sissy Miller.” Gilbert Clandon, pegando um broche de pérolas que estava
em meio a uma barafunda de anéis e broches numa mesinha da sala de visitas de
sua esposa, leu a inscrição: “Para Sissy Miller, com amor”.
Era bem típico de Angela ter se lembrado até mesmo de Sissy Miller, sua
secretária. No entanto como era estranho, Gilbert Clandon pensou mais uma vez,
que ela tivesse deixado tudo em tal ordem – um presentinho de algum tipo para
cada uma de suas amigas. Era como se ela tivesse antevisto a própria morte.
Porém se achava na mais perfeita saúde ao sair de casa aquela manhã; fazia
então seis semanas, quando pisou fora da calçada, em Piccadilly, e o carro a
atropelou e matou.


Ele estava esperando Sissy Miller. Tinha pedido que ela viesse; sentia deverlhe,
após os anos todos que ela estivera com eles, essa demonstração de estima.
Sim, prosseguiu ele, enquanto se sentava à espera, era estranho que Angela
tivesse deixado tudo tão em ordem. A cada amiga fora destinada uma pequena
lembrança de seu afeto. Cada anel, cada colar, cada caixinha chinesa – as
caixinhas lhe inspiravam verdadeira paixão – levava um nome por cima. E cada
qual, para ele, trazia alguma lembrança. Tal joia ele lhe havia dado; a tal outra –
o golfinho esmaltado com olhos de rubi – ela mesma se atirara um dia numa
ruela de Veneza. Seu gritinho de alegria ainda lhe vinha à lembrança. Para ele, é
claro, nada de especial ela deixara, a não ser seu diário. Quinze pequenos
volumes, encadernados em couro verde, enfileiravam-se em sua escrivaninha
por trás dele. Desde que se casaram, ela manteve um diário. Algumas de suas
pouquíssimas zangas – já que ele não era capaz de considerá-las brigas – tinham
sido por causa desse diário. Quando ele entrava e a encontrava escrevendo, ela
sempre o fechava ou encobria com a mão. “Não, não, não”, podia ouvi-la ainda
a dizer. “Depois que eu morrer – talvez.” Ela assim o deixara para ele, como seu
legado. Era a única coisa que não haviam partilhado quando ela estava viva. Ele
porém sempre tomara por certo que ela viveria mais do que ele. Caso houvesse
parado um instante, e refletido sobre o que estava fazendo, ela agora ainda
estaria viva. Mas descera da calçada para a rua de súbito, como alegou na
sindicância o motorista do carro. Não lhe dera a menor chance de frear… O som
de vozes no corredor o interrompeu a essa altura.
“Miss Miller, senhor”, disse a empregada.


Ela entrou. Em toda sua vida, ele nunca a vira a sós, nem, claro está, em
lágrimas. Achava-se terrivelmente abalada, o que não era de estranhar. Angela
fora para ela muito mais do que uma simples patroa. Tinha sido uma amiga. Já
para ele, pensou o próprio, ao puxar uma cadeira e convidá-la a sentar-se, ela
mal se distinguia de qualquer mulher do seu tipo. Havia milhares de Sissy Millers
– mulheres de preto, miúdas e insípidas, carregando pastas de documentos. Mas
Angela, com seu pendor à simpatia, descobrira em Sissy Miller as mais diversas
qualidades. Era a discrição em pessoa, de tão calada; e tão digna de confiança,
que se podia contar-lhe qualquer coisa, e assim por diante.
Miss Miller, a princípio, nem conseguia falar. Sentada, limitava-se a enxugar
recatadamente seus olhos com um lencinho de bolso. Depois porém fez um
esforço.
“Desculpe-me, Mr. Clandon”, disse.


Ele murmurou qualquer coisa. É claro que compreendia. Nada mais
natural. Era capaz de imaginar o que sua mulher tinha significado para ela.
“Eu fui tão feliz aqui”, disse ela, olhando em volta. Seus olhos pararam na
escrivaninha por trás dele. Era ali que elas trabalhavam – ela e Angela. Pois
Angela tinha sua cota das obrigações inerentes à condição de esposa de um
destacado político. Fora ela quem mais o ajudara na carreira. Muitas vezes as
vira, ela e Sissy, sentadas à escrivaninha – Sissy à máquina de escrever, batendo
cartas que a patroa ditava. Miss Miller, sem dúvida, também pensava nisso agora.
Tudo que ele tinha pois a fazer era dar-lhe o broche que sua esposa lhe havia
deixado. Um presente que parecia meio incongruente. Deixar-lhe uma soma em
dinheiro, ou mesmo a máquina de escrever, poderia ter sido melhor. Mas o
broche lá estava – “Para Sissy Miller, com amor”. E ele, apanhando-o, entregouo
com o discursinho que havia preparado. Sabia, disse, que ela lhe daria valor.
Sua esposa o usara tantas vezes… E Sissy respondeu ao pegá-lo, quase como se
também tivesse preparado um discurso, que aquele seria um bem muito
estimado… Ele supôs que ela tivesse outras roupas nas quais um broche de
pérolas não parecesse tão descabido. Estava usando o conjuntinho preto, de
casaco e saia, que parecia ser o uniforme de sua profissão. Mas depois ele se
lembrou – claro, ela estava de luto. Tinha tido também sua tragédia – um irmão,
ao qual era devotada, morrera apenas uma ou duas semanas antes de Angela.
Um acidente, não foi? Ele somente conseguia lembrar-se de Angela lhe falando
a respeito; Angela, com seu pendor à simpatia, ficara terrivelmente abalada.
Sissy Miller, enquanto isso, já se levantara. E estava botando as luvas. Sentia
evidentemente que não devia incomodar. Ele porém não podia deixar que ela se
fosse sem lhe dizer alguma coisa sobre o seu futuro. Que planos tinha? Havia
algum modo pelo qual ele pudesse ajudá-la?


Ela estava olhando para a escrivaninha, onde se sentara à máquina de
escrever e onde jazia o diário. Perdida em suas recordações de Angela, não
respondeu de imediato à sugestão de ajuda que partira dele. Parecia, por um
momento, não haver entendido. Ele então repetiu:
“Quais são seus planos, Miss Miller?”.
“Meus planos? Oh, está tudo bem, Mr. Clandon”, exclamou ela. “Não se
preocupe comigo, por favor.”
Ele entendeu que ela queria dizer que não necessitava de ajuda financeira.
Seria melhor, deu-se conta, fazer qualquer sugestão desse tipo numa carta. Tudo
que agora lhe cabia era dizer, enquanto apertava sua mão: “Lembre-se, Miss
Miller, de que se houver algum modo de eu poder ajudá-la, será um prazer…”. E
então abriu a porta. Por um instante, no limiar, como se um súbito pensamento
lhe tivesse ocorrido, ela parou.


“Mr. Clandon”, disse, olhando diretamente para ele pela primeira vez, e pela
primeira vez ele se impressionou com a expressão de seus olhos, que era
simpática porém penetrante. “Se alguma vez”, dizia [ela], “houver alguma coisa
que eu possa fazer para ajudá-lo, lembre-se que, pela memória de sua esposa,
será um prazer para mim…”.
E com isso se foi. Suas palavras e o olhar que as acompanhara tinham sido
inesperados. Era quase como se ela acreditasse, ou esperasse, que ele ainda viria
a precisar dela. Uma ideia esquisita, talvez fantasiosa, ocorreu-lhe quando ele
voltava para se sentar. Seria possível que, durante todos esses anos em que mal
chegara a notá-la, ela, como dizem os romancistas, tivesse nutrido uma paixão
por ele? Tinha visto, ao passar, sua própria imagem no espelho. Já estava com
mais de cinquenta anos; mas não podia deixar de admitir que ainda era, como o
espelho lhe mostrara, um homem de aparência muito distinta.


“Pobre Sissy Miller!”, disse ele, rindo um pouco. Como ele gostaria de
partilhar com a esposa tal pilhéria! Instintivamente voltou-se para o diário dela.
“Gilbert”, leu, abrindo-o ao acaso, “estava tão maravilhoso…”. Era como se ela
tivesse respondido à sua pergunta. Para as mulheres, naturalmente, parecia dizer
ela, você é muito atraente. E naturalmente Sissy Miller também achava isso.
Continuou lendo. “Como me sinto orgulhosa de ser sua esposa!” E ele sempre se
sentira muito orgulhoso de ser marido dela. Quantas vezes, quando saíam para
jantar fora, ele olhava para ela através da mesa e dizia a si mesmo: Não há aqui
outra mulher tão bela! Leu mais um pouco. Naquele primeiro ano ele se
candidatara ao Parlamento. E juntos tinham percorrido seu distrito eleitoral.
“Quando Gilbert se sentou, o aplauso foi estrondoso. Toda a audiência se levantou
e cantou: ‘Pois ele é um bom companheiro’. Aquilo me dominou por completo.”
Ele também se recordava do fato. Ela estava sentada no palanque a seu lado.

 

Ele ainda podia ver as olhadas que ela lhe dava, com lágrimas nos olhos. E depois?
Ele virou as páginas. Tinham viajado a Veneza. Ele rememorou aquelas férias
felizes após a eleição. “Tomamos sorvete no Florian.” Ele sorriu – ela era ainda
tão criança, adorava sorvete. “Gilbert me fez um relato dos mais interessantes
sobre a história de Veneza. Disse-me que os doges…”, e anotara tudo, em sua
letra de estudante. Uma das delícias de viajar com Angela era o fato de ela se
mostrar sempre tão ávida por aprender. Costumava dizer-se terrivelmente
ignorante, como se isso não fosse parte de seu charme. E então – ele abriu o
volume seguinte – regressaram a Londres. “Eu estava tão ansiosa para causar
boa impressão. Usei meu vestido de casamento.” Ele agora podia vê-la sentada
ao lado do velho Sir Edward; e fazendo a conquista desse homem tão vivido e
temível, que era seu líder. Leu bem rápido, completando cena após cena a partir
dos fragmentos desconexos. “Jantei na Câmara dos Comuns… Sarau nos
Lovegroves. Lady L. perguntou-me se eu me dava conta de minha
responsabilidade como esposa de Gilbert.” Com o passar dos anos – e apanhou
mais um volume na escrivaninha –, ele se absorvera cada vez mais em seu
trabalho. E ela, é claro, foi ficando cada vez mais sozinha, visivelmente muito
pesarosa por não terem tido filhos. “Como eu gostaria”, dizia uma passagem,
“que Gilbert tivesse um filho!”. Ele, por estranho que fosse, nunca o lamentara
tanto. A vida já era tão boa, tão cheia, como estava sendo. Naquele ano lhe
haviam dado um cargo de pouca projeção no governo. Apenas um cargo
secundário, mas foi este o comentário dela: “Tenho quase certeza agora de que
ele será primeiro-ministro!”. Bem, se as coisas tivessem tomado um rumo
diferente, até que poderia ter sido. E ele aqui fez uma pausa para especular sobre
o que poderia ter sido. A política era um jogo arriscado, refletiu; mas as partidas
ainda não tinham terminado. Não aos cinquenta anos. Rapidamente deu uma
olhada em mais páginas, cheias de pequenas trivialidades, das felizes e
insignificantes trivialidades cotidianas que constituíam a vida dela.


Pegou ainda outro volume e abriu-o ao acaso. “Como eu sou covarde!
Deixei escapulir a oportunidade de novo. Mas parecia egoísmo incomodá-lo com
meus próprios problemas, quando ele já tem tanto sobre o que pensar. E é tão
raro passarmos uma noite juntos.” Qual seria o significado disso? Ah, aqui estava
a explicação – era uma referência ao trabalho dela no East Side.
“Enchi-me de coragem e afinal conversei com Gilbert. Ele foi tão gentil,
tão bom. Não fez nenhuma objeção.” Ele se lembrava dessa conversa. Ela lhe
dissera que se sentia muito ociosa, muito inútil. Desejava por isso ter seu próprio
trabalho. Queria fazer alguma coisa – ficara tão bonita, recordou-se ele, ao
enrubescer quando disse isso sentada naquela mesma cadeira – para ajudar os
outros. E ele brincara um pouco com ela: já não tinha muito a fazer cuidando
dele, cuidando de sua casa? Ainda assim, se isso a distrairia, é claro que não faria
objeções. De que se tratava? Algum trabalho distrital? Algum comitê?

 

Apenas ela devia prometer não abusar de sua saúde. Parecia assim que todas as quartasfeiras
ela ia ao distrito de Whitechapel. Lembrou-se de como ele detestava as
roupas que nessas ocasiões ela usava. Mas parecia também que ela havia tomado
a coisa muito a sério. O diário estava cheio de referências como esta: “Estive
com Mrs. Jones… Ela tem dez filhos… O marido perdeu o braço num acidente…
Fiz o que pude para arranjar um emprego para Lily ”. Ele continuou pulando
páginas. Seu próprio nome surgia menos frequentemente agora. Seu interesse
diminuiu. Algumas das anotações não lhe diziam nada. Por exemplo: “Tive uma
discussão calorosa sobre o socialismo com B.M.” Quem era B.M.? Ele não
conseguia decifrar as iniciais; alguma mulher, supôs, que ela conhecera num de
seus comitês. “B.M. fez um ataque violento às classes superiores… Voltei
andando com B.M., depois da reunião, e tentei convencê-lo. Mas ele é tão
bitolado.” B.M. então era um homem – sem dúvida, um desses “intelectuais”,
como eles mesmos se dizem, que são tão violentos e tão bitolados, como
escrevera Angela. Ela o convidara, ficava claro, a ir visitá-la em casa. “B.M.


veio para jantar. E cumprimentou Minnie com um aperto de mãos!” Esse ponto
de exclamação deu outra configuração à sua imagem mental. Tudo indicava que
B.M. não estava acostumado com empregadas domésticas; tinha apertado a mão
de Minnie. Presumivelmente era um desses trabalhadores submissos que arejam
suas opiniões nas salas de visitas das senhoras grã-finas. Gilbert conhecia a
espécie e não lhe agradava em nada essa variedade específica, fosse quem fosse
o tal B.M. Aqui já estava ele de novo. “Fui com B.M. à Torre de Londres… Ele
disse que a revolução é inevitável… Disse que vivemos num paraíso de tolos.”
Era bem o tipo de coisa para B.M. dizer – Gilbert até podia ouvi-lo. E podia
também vê-lo com toda nitidez – um homenzinho atarracado, de barba espessa e
descuidada, gravata vermelha, vestindo o terno xadrez que eles usavam sempre e
que nunca enfrentara em sua vida um dia honesto de trabalho. Por certo não
faltara sensatez a Angela para enxergá-lo tal como era. Continuou lendo. “B.M.
disse umas coisas muito desagradáveis sobre…” O nome estava cuidadosamente
riscado. “Eu disse a ele que não iria ouvir nenhum desaforo mais contra…” O
nome fora suprimido de novo. Poderia ter sido seu próprio nome? Era por isso
que Angela cobria a página com tal rapidez, quando ele entrava? Tal ideia veio
somar-se a sua crescente antipatia por B.M., que havia tido a petulância de
discutir a seu respeito nesta mesma sala.

 

Por que Angela nunca lhe contara? Ocultar alguma coisa não combinava com ela, que sempre fora a sinceridade
em pessoa. E lá foi ele, ao virar mais páginas, catando todas as referências a
B.M. “B.M. me narrou sua infância. Sua mãe vivia de pequenos biscates…
Quando penso nisso, mal suporto continuar a viver com tanto luxo… Três guinéus
por um chapéu!” Se ao menos ela tivesse discutido a questão com ele, em vez de
deixar sua pobre cabecinha intrigada com problemas que eram difíceis demais
para ela mesma entender! Ele lhe teria passado uns livros. Karl Marx. “A
revolução que se aproxima.” As iniciais B.M., B.M., B.M. reapareciam repetidas
vezes. Mas por que nunca o nome todo? Havia uma informalidade, uma
intimidade no uso de iniciais que não combinava nada com Angela. Face a face,
porventura ela o chamaria de B.M.? Gilbert prosseguiu com a leitura. “B.M. veio
inesperadamente para o jantar. Por sorte eu estava sozinha.” Isso havia sido há
apenas um ano. “Por sorte” – mas por que por sorte? – “eu estava sozinha”. Onde
estivera ele essa noite? Conferiu a data em sua agenda. Fora a do jantar na
residência oficial do prefeito de Londres. E B.M. e Angela tinham passado a noite
a sós! Tentou lembrar-se da ocasião. Estava ela à sua espera quando ele voltou
para casa? A aparência da sala era a mesma de sempre? Havia copos sobre a
mesa? E as cadeiras, por acaso estavam juntas demais? Não conseguia se
lembrar de nada – de nada que fosse, de nada a não ser seu próprio discurso no
jantar na residência do prefeito.

 

Toda a situação: sua esposa recebendo um
desconhecido sozinha – tornava-se cada vez mais inexplicável para ele. Talvez o
volume seguinte fosse mais esclarecedor. Apressadamente ele apanhou o último
diário – o que ela deixara inacabado ao morrer. Logo na primeira página lá
estava de novo o abominável sujeito. “Jantei a sós com B.M… Ele ficou muito
agitado. Disse que já era hora de nós nos entendermos… Tentei ponderar com
ele. Mas ele não quis me ouvir. Ameaçou que, se eu não…” Todo o resto da
página estava rabiscado. Pelo espaço afora ela escrevera apenas “Egito. Egito.
Egito.” Ele não conseguia decifrar uma palavra sequer; mas só podia haver uma
interpretação: o safado lhe pedira para ela se tornar sua amante. A sós em sua sala!
O sangue subiu ao rosto de Gilbert Clandon. Rapidamente ele virou as páginas.
Qual fora a resposta dela? As iniciais tinham cessado. Agora era “ele” simplesmente.
“Ele veio de novo. Eu lhe disse que não podia chegar a uma decisão… Implorei que
ele me deixasse.” Ele a pressionara pois ali mesmo em casa? Mas por que ela não
contara nada? Como poderia ter hesitado um instante?E então: “Escrevi-lhe uma
carta”. Então páginas deixadas em branco. E então havia isto: “Não há resposta
para minha carta”. Então mais páginas em branco; e então isto: “Ele fez o que havia
ameaçado”. Depois disso – o que aconteceu depois disso? Virou página após
página. Todas em branco. Mas aí, na própria véspera da morte dela, estava esta
anotação: “Será que eu tenho coragem de fazer isso também?”. Foi esse o fim.
Gilbert Clandon deixou o caderno escorregar para o chão. Podia vê-la à sua
frente. Ela estava de pé no meio-fio, em Piccadilly. Tinha os olhos fixos; os
punhos cerrados. E lá vinha o carro…


Ele não podia mais aguentar. Tinha de saber a verdade. Foi, a passos largos,
para o telefone.
“Miss Miller!” Houve silêncio. Mas logo ele ouviu que alguém estava se
mexendo na sala.
“Alô, é Sissy Miller” – finalmente respondeu a voz dela.
“Quem”, disparou ele, “é B.M.?”.


Pôde ouvir o barulho do relógio barato sobre a lareira de Sissy ; pôde ouvir
um suspiro longo e arrastado. E por fim ela disse:
“Era meu irmão”.
Ele era o irmão dela; o irmão que se matara.
“Há”, ouviu Sissy Miller perguntando, “alguma coisa que eu possa
explicar?”.
“Não, nada!”, gritou. “Nada!”
Ele havia recebido o seu legado. Ela lhe dissera a verdade. Tinha pisado
fora da calçada para reunir-se ao amante. Tinha pisado fora da calçada para
escapar do marido.

Virginia Wolf
Enviado por Mafra Editions em 06/10/2023
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